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Filme de Amor: o erotismo e o mal.

Atualizado: 12 de out. de 2023



Por Danilo Dias de Freitas


O que está em jogo

no erotismo é sempre uma dissolução das formas

constituídas. Repito-o: dessas formas de vida social,

regular, que fundam a ordem descontínua das

individualidades definidas que somos1.

O erotismo - Georges Bataille.


Se nos contentássemos com uma forma laudatória de ver Filme de Amor (2003), diríamos que Julio Bressane quis representar o mito das três graças. E não nos faltariam indícios para tal laudo, embora já tenhamos dito em outros momentos desta mesma curadoria que um filme sempre transborda as supostas intenções de seu autor. Isso para não falarmos de toda tensão teórica e política que envolve a ideia de autor no cinema. Mas isso é coisa que ultrapassa nossas intenções de momento. Por hora basta dizermos que os filmes de Bressane, antes de um conteúdo cifrado, nos parecem um convite ao deslizamento por entre os restos da dissolução das formas constituídas. Mas voltemos ao filme.

Depois de sua abertura formal, momento em que o aparato cinematográfico é revelado, temos a abertura propriamente dita: da espuma do mar, em pernas femininas, brota Vênus. Em seguida, como no mito original, sua unidade metamorfoseia-se na trindade das graças; número ímpar que segundo Virgílio agradaria a Deus. Pela indicação inicial, a unidade de Vênus estaria representada na figura de Bel Garcia, pois o corpo feminino que sai do mar também está de maiô azul, tal como sua personagem, Hilda, na cena subsequente. Mas aqui já temos um aperitivo da fórmula bressaniana: um homem assume a figura de uma das três graças, corrompendo a imagem original do mito.

Ao longo do filme veremos ainda um grande acúmulo de referências filosóficas, literárias e pictóricas sobre o mito das três graças. E não por acaso, o rosto de Hilda é pego em close na cena que antecede o fechamento do filme e do ciclo mítico: momento do retorno de Vênus às forças da natureza, de integração do diferenciado ao indiferenciado tão fortemente expresso pelo uivo do vento sobre a imensidão do mar.

Se quiséssemos ir um pouco mais longe, diríamos que o mito das três graças é cinematograficamente expresso pelo conceito de harmonia, filha impura da união ilícita entre Marte (Deus da guerra) e Vênus (Deusa do amor). Mas isso ainda seria demasiadamente laudatório.

É certo que Bressane recolhe todas essas referências, e muitas outras, que vão da mitologia clássica à música popular brasileira, passando pela pintura erótica de Balthasar klossowski e a retomada de seus próprios filmes, como Matou a Família e Foi ao Cinema (1969), O Anjo Nasceu (1969), O Rei do Baralho (1973), A Agonia (1978); mas tudo isso reunido nos parece apenas o combustível, não o motor da coisa.

O que liga e dá movimento é antes o erotismo que transpassa este Filme de Amor, no sentido batailliano em que o erotismo é “o desequilíbrio em que o próprio ser se coloca em questão, conscientemente. Em certo sentido, o ser se perde objetivamente, mas então o sujeito se identifica com o objeto que se perde. Se for preciso, posso dizer, no erotismo: EU me perco”2. Em suma, parece que para Bressane fazer cinema envolve todo o prazer e angústia erótica da dissolução do EU.

Mas como isso acontece em Filme de Amor?

A partir da ideia de que o erotismo é o exercício ambíguo, sempre ao mesmo tempo, de suspensão e conservação dos interditos. E que o cinema - tal como o cosmos, a natureza, a vida - é um excesso, uma violência que ameaça a estabilidade do humano.

Nesse sentido, o erotismo de Filme de Amor se dá na medida dos pagãos, para quem, ao contrário dos cristãos, o sagrado não está forçosamente na pureza, mas também no impuro, no imundo. O erotismo é o diabólico, o mal, em linguagem batailliana.

Por isso a equivalência bressaniana - neste filme como em outros - entre o sensível e o inteligível, o profano e o sagrado, o alto e o baixo, o animal e o humano, o erudito e o popular, o preto e branco e o colorido. Como nas palavras de Santamaria, transportadas de o O Anjo Nasceu para a boca de Matilda: “O que tá certo, tá errado. E o que tá errado, tá certo. Porque certo e errado são a mesma coisa”.

A transfiguração dessas vozes, assim como a equivalência entre o certo e o errado - ponto agudo do decalque bressaniano - não parecem mera transgressão obscena dos interditos, especialmente da morte, do sexo e do trabalho, mas um exercício de imanência radical; uma forma de dizer que o estado de coisas humanas nunca é definitivo. E que os padrões do amor, da beleza e do prazer são apenas padrões, não uma verdade em si.

Três trabalhadores: uma ascensorista, um cabeleireiro e uma manicure são os porta-vozes corporais do erotismo sagrado. A vênus que se desdobra nas figuras de Abigail, Thalia e Eufrosina; a beleza, o amor e o prazer. O triplo ritmo do benefício: o dar, o receber e o retribuir; Matilda, Hilda e Gaspar.

O cinema como erotismo, como arte das misturas, como violação do ser, como exercício da impureza primordial. Daí sua afinidade com o mal.


Notas:


1. BATAILLE, Georges. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. p. 42.

2. BATAILLE, Georges. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. p. 55.

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