Por Danilo Dias de Freitas
Começo por um dado histórico, biográfico, não como quem estabelece um ponto originário no tempo, mas como quem tateia um instante prenhe de bifurcações, retornos e avanços infinitos. Em 1969, Julio Bressane e Rogério Sganzerla se encontram no Festival de Brasília. Bressane para exibir O anjo Nasceu; Sganzerla para exibir A Mulher de Todos. E desse encontro nasce a Belair Filmes.
Mas os filmes Belair estavam lá desde sempre, em Julio e Rogério.
Em Bressane, na evocação primordial do cinema como atração popular, teatro de sombras, mistério, lanterna mágica. Em Rogério, o universo marginal, o cinema como exercício último da liberdade.
Assim como o Anjo Nasceu (1969) e Matou a Família e Foi ao Cinema (1969), Cuidado Madame (1970) tem seus interlocutores históricos: o cinema novo e Glauber Rocha em especial. Mas essa interlocução aparece apenas como dado conjuntural. O essencial, me parece, é que para Bressane o cinema não é um reflexo superestrutural do ser social. O cinema é parte de sua infraestrutura. Não só porque sua cadeia produtiva está submetida à divisão internacional do trabalho, mas porque mesmo as imagens, os sons, o ritual da sala escura, tudo que envolve o cinema expressa não uma ideologia, mas maquinarias de produção subjetiva e montagem do real.
A sugestão de que “a fome ainda é o maior problema”1, tal como na manchete de jornal ensanguentada, aparece como externalidade discursiva. Digo externalidade no sentido de que o filme não desenvolve um acúmulo de referências narrativamente encadeadas que permitam ao espectador identificar os mecanismos de produção da fome e da violência. Talvez porque, aqui, novamente, o cinema de Bressane não se pense como reflexo do real, isto é, como fato exterior ao circuito da fome e da violência que buscaria representar, mas como ingrediente central do processo; instância de fabricação sensível do real.
No mesmo jornal ensanguentando, na parte de baixo, aparece: “da Borracha S.A”. Na cena imediatamente anterior aparece a justificativa para tal aparição: a personagem de Maria Gladys é informada de que uma colega de trabalho havia se mudado para Cuiabá a fim de trabalhar no "mercado livre da borracha". Outra vez, as camadas do discurso vão se sobrepondo a partir do não representado.
A reposição, ou melhor, a repaginação de um dado estrutural da formação do Brasil é estampado na manchete de jornal, mas só pode ser elaborado como discurso pelas lacunas verticais que o filme emoldura, nunca pela trajetória horizontal de suas personagens.
O dito pelo não dito é o seguinte: a máquina de moer gente que é o Brasil viveu e continua vivendo de ciclos extrativistas primários; estes ciclos se ligam à economia internacional por relações sociais internas calcadas na super exploração do trabalho e na violência estrutural das massas trabalhadoras. Mas tal violência só aparece em sua fria impessoalidade. As viaturas da polícia estão sempre vazias e envoltas por um silêncio fúnebre.
Além do mais, toda possibilidade de assimilação consciente da revolta é absorvida pela paródia, a carnavalização, a dança, a música popular. A ação revoltosa das empregadas acontece antes de tudo num sentido de liberação pulsional. A personagem de Maria Gladys assassina as madames porque elas lhe enchem o saco. Porque “essa de doméstica não dá pé”. E porque “quem se entregar agora, morre depois”.
Quando informada da ida da amiga para Cuiabá, só é capaz de dizer: “que gelada!”. Não há nenhuma assimilação totalizante da experiência social. Não há nenhuma superioridade moral nem heroísmo de classe aqui. O cinema de Bressane não pretende o didatismo; não quer a identificação do público ao mundo fechado das personagens. Sua câmera não hierarquiza; antes observa e esvazia. Seus planos e sua montagem separam o olhar da cena, retirando da tela os procedimentos hipnótico-fusionais. Não como no distanciamento brechtiano - procedimento caro ao cinema novo -, mas numa espécie de transgressão dos limites que separam quem está atrás e quem está à frente da câmera.
Nessa transgressão de limites, o espectador é abandonado diante da quebra dos tabus sociais. O improviso, a falta de um roteiro, a difusão de personagens encarnadas pela mesma atriz (Helena Ignez), a câmera na mão e os longos planos-sequências são um grito de liberdade contra os interditos e prescrições de toda ordem. Cuidado Madame é um grito de liberdade contra a domesticação do cinema e da vida. Com esse filme, Bressane traz à superfície, como no efeito agudo da navalha sobre a carne (e o olhar), a máxima de Luis Buñel: “nas mãos de um espírito livre, o cinema é uma arma magnífica e perigosa”2.
Notas:
1 Aqui, pelo que se pode inferir da conjuntura histórica em que o filme foi realizado, parece haver um ataque ao cinema novo e a Glauber Rocha, que teria abandonado a estética da fome em favor de um “cangaceiro com lenço rosa-shocking”. A citação é de uma entrevista concedida por Rogério Sganzerla e Helena Ignez a'O Pasquim. A entrevista foi originalmente publicada em 5 de Janeiro de 1970. In: CANUTO, Roberta. Encontros: Rogério Sganzerla. Rio de Janeiro. Azougue Editorial. 2007. p. 63.
2 Luis Buñuel. Cinema: instrumento de poesia. In: XAVIER, Ismail. (org) A experiência do cinema. Rio de Janeiro. Edições Graal e Embrafilme. 1983. p. 168.
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