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Cuidado, Madame!

Atualizado: 12 de out. de 2023



Por Danilo Dias de Freitas

Começo por um dado histórico, biográfico, não como quem estabelece um ponto originário no tempo, mas como quem tateia um instante prenhe de bifurcações, retornos e avanços infinitos. Em 1969, Julio Bressane e Rogério Sganzerla se encontram no Festival de Brasília. Bressane para exibir O anjo Nasceu; Sganzerla para exibir A Mulher de Todos. E desse encontro nasce a Belair Filmes.

Mas os filmes Belair estavam lá desde sempre, em Julio e Rogério.

Em Bressane, na evocação primordial do cinema como atração popular, teatro de sombras, mistério, lanterna mágica. Em Rogério, o universo marginal, o cinema como exercício último da liberdade.

Assim como o Anjo Nasceu (1969) e Matou a Família e Foi ao Cinema (1969), Cuidado Madame (1970) tem seus interlocutores históricos: o cinema novo e Glauber Rocha em especial. Mas essa interlocução aparece apenas como dado conjuntural. O essencial, me parece, é que para Bressane o cinema não é um reflexo superestrutural do ser social. O cinema é parte de sua infraestrutura. Não só porque sua cadeia produtiva está submetida à divisão internacional do trabalho, mas porque mesmo as imagens, os sons, o ritual da sala escura, tudo que envolve o cinema expressa não uma ideologia, mas maquinarias de produção subjetiva e montagem do real.

A sugestão de que “a fome ainda é o maior problema”1, tal como na manchete de jornal ensanguentada, aparece como externalidade discursiva. Digo externalidade no sentido de que o filme não desenvolve um acúmulo de referências narrativamente encadeadas que permitam ao espectador identificar os mecanismos de produção da fome e da violência. Talvez porque, aqui, novamente, o cinema de Bressane não se pense como reflexo do real, isto é, como fato exterior ao circuito da fome e da violência que buscaria representar, mas como ingrediente central do processo; instância de fabricação sensível do real.

No mesmo jornal ensanguentando, na parte de baixo, aparece: “da Borracha S.A”. Na cena imediatamente anterior aparece a justificativa para tal aparição: a personagem de Maria Gladys é informada de que uma colega de trabalho havia se mudado para Cuiabá a fim de trabalhar no "mercado livre da borracha". Outra vez, as camadas do discurso vão se sobrepondo a partir do não representado.

A reposição, ou melhor, a repaginação de um dado estrutural da formação do Brasil é estampado na manchete de jornal, mas só pode ser elaborado como discurso pelas lacunas verticais que o filme emoldura, nunca pela trajetória horizontal de suas personagens.

O dito pelo não dito é o seguinte: a máquina de moer gente que é o Brasil viveu e continua vivendo de ciclos extrativistas primários; estes ciclos se ligam à economia internacional por relações sociais internas calcadas na super exploração do trabalho e na violência estrutural das massas trabalhadoras. Mas tal violência só aparece em sua fria impessoalidade. As viaturas da polícia estão sempre vazias e envoltas por um silêncio fúnebre.

Além do mais, toda possibilidade de assimilação consciente da revolta é absorvida pela paródia, a carnavalização, a dança, a música popular. A ação revoltosa das empregadas acontece antes de tudo num sentido de liberação pulsional. A personagem de Maria Gladys assassina as madames porque elas lhe enchem o saco. Porque “essa de doméstica não dá pé”. E porque “quem se entregar agora, morre depois”.

Quando informada da ida da amiga para Cuiabá, só é capaz de dizer: “que gelada!”. Não há nenhuma assimilação totalizante da experiência social. Não há nenhuma superioridade moral nem heroísmo de classe aqui. O cinema de Bressane não pretende o didatismo; não quer a identificação do público ao mundo fechado das personagens. Sua câmera não hierarquiza; antes observa e esvazia. Seus planos e sua montagem separam o olhar da cena, retirando da tela os procedimentos hipnótico-fusionais. Não como no distanciamento brechtiano - procedimento caro ao cinema novo -, mas numa espécie de transgressão dos limites que separam quem está atrás e quem está à frente da câmera.

Nessa transgressão de limites, o espectador é abandonado diante da quebra dos tabus sociais. O improviso, a falta de um roteiro, a difusão de personagens encarnadas pela mesma atriz (Helena Ignez), a câmera na mão e os longos planos-sequências são um grito de liberdade contra os interditos e prescrições de toda ordem. Cuidado Madame é um grito de liberdade contra a domesticação do cinema e da vida. Com esse filme, Bressane traz à superfície, como no efeito agudo da navalha sobre a carne (e o olhar), a máxima de Luis Buñel: “nas mãos de um espírito livre, o cinema é uma arma magnífica e perigosa”2.



Notas:


1 Aqui, pelo que se pode inferir da conjuntura histórica em que o filme foi realizado, parece haver um ataque ao cinema novo e a Glauber Rocha, que teria abandonado a estética da fome em favor de um “cangaceiro com lenço rosa-shocking”. A citação é de uma entrevista concedida por Rogério Sganzerla e Helena Ignez a'O Pasquim. A entrevista foi originalmente publicada em 5 de Janeiro de 1970. In: CANUTO, Roberta. Encontros: Rogério Sganzerla. Rio de Janeiro. Azougue Editorial. 2007. p. 63.


2 Luis Buñuel. Cinema: instrumento de poesia. In: XAVIER, Ismail. (org) A experiência do cinema. Rio de Janeiro. Edições Graal e Embrafilme. 1983. p. 168.

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