Por Danilo Dias de Freitas
Tempo de Viver (1994) é o sexto longa-metragem de Zhang Yimou. Se quiséssemos localizá-lo no quadro histórico dos filmes realizados por seus contemporâneos chineses, diríamos que o filme se encaixa na segunda fase da produção da chamada "Quinta Geração"1. Uma fase dedicada ao balanço histórico que vai da Grande Revolução de 1949 à Revolução Cultural Proletária de 1966.
Depois da reabertura do Instituto de Cinema de Pequim, em 1978, após mais de uma década de Revolução Cultural, cineastas como Chen Kaige, Zhang Yimou e Tian Zhuangzhuang começam a fazer seus primeiros filmes. Estes filmes da primeira fase da Quinta Geração voltam-se para o interior da China, numa espécie de fuga sintomática das feridas acumuladas por uma década de Revolução Cultural.
Esse sintoma aparece na forma de uma busca idealizada da identidade nacional a partir do mundo rural chinês. O resultado discursivo, como se pode notar em Terra Amarela (1984), muitas vezes é anacrônico. Segundo Zhang Xudong, “o estilo elevado desses filmes, ao transfigurar o objeto da representação em algo "atemporal", parecia distante da experiência concreta de seu próprio tempo, não tendo logrado representar ou narrar o processo épico de transformação social em curso no país durante a era das reformas econômicas de Deng Xiaoping”2.
Já filmes como Tempo de Viver se inserem nesta nova conjuntura, já que as reformas de Deng Xiaoping significaram o fim do monopólio estatal sobre a indústria cinematográfica. A partir daí a indústria passa a enfrentar as leis de mercado a quente, resultando na busca de um cinema comercial integrado às demandas internacionais. Tempo de Viver se encaixa, portanto, no paradigma do cinema chinês para exportação. E aqui há uma questão importante: se os filmes da primeira fase pecam no conteúdo por sua idealização histórica, por outro lado, apresentam inovações e experimentações estéticas admiráveis. Os filmes da segunda fase, ao contrário, buscam um balanço histórico mais concreto, mas a custo de uma adesão estética ao que há de mais corriqueiro no cinema de exportação. São os dilemas de uma cinematografia ora sob monopólio do estado, ora sob as leis de mercado.
Esses curtos-circuitos entre forma e conteúdo nos indicam as contradições típicas do processo de transição chinês. As contradições entre enunciados formais e enunciados de conteúdo indicam um ao outro, dialeticamente, os limites e as possibilidades de superação de sua historicidade. Por isso a estranheza de um filme como Tempo de Viver.
Um filme de balanço histórico, com forte potencial de reinvenção do ferramental épico, mas envelopado por formas trágico-dramáticas. Os três grandes acontecimentos históricos representados pelo filme, a saber, Revolução de 1949, o Grande Salto Adiante (1958) e Revolução Cultural (1966) são marcados pelo drama familiar e suas três mortes trágicas.
No esquema da tragédia clássica, o efeito purificador da catarse deve purgar a falha trágica do heroi através de uma morte catastrófica (do próprio heroi ou de seus entes queridos), reconciliando de modo vicário o espectador com o ethos social dominante. Mas qual seria o ethos social dominante em uma sociedade em transição revolucionária? Que tipo de heroi trágico seria compatível com esta situação?
Na historiografia dos gêneros narrativos é ponto pacífico que a representação estética dominante dos processos revolucionários envolve formas épicas, mas quanto de tragédia haveria neles? Quanto de drama? Quanto de comédia?
Talvez por isso a estranheza de um filme como Tempo de Viver. Os curtos circuitos entre enunciados formais e enunciados históricos dão ao espectador uma forte sensação de inverossimilhança. Como se houvesse um certo exagero formal, na medida em que os conteúdos históricos representados não parecem compatíveis com a forma narrativa escolhida. Não que haja formas narrativas ideais para conteúdos históricos específicos. Isso seria mecanicismo formal e idealismo histórico. É que de um filme com nítidas pretensões realistas espera-se sobretudo verossimilhança, isto é, uma proporcionalidade entre fatos históricos e formas estéticas. E muitas vezes, nessa desproporção, o filme descamba para as formas mais caricatas do melodrama. Por isso mesmo, uma segunda camada discursiva, alegórica, por assim dizer, toma relevo tão importante para o espectador mais atento.
O Baú utilizado para guardar as velhas marionetes do teatro de sombras, depois de todo o processo histórico que o filme busca representar, é o depositário material e simbólico do futuro a ser construído (pois serve de morada aos pintinhos). O discurso é auto-evidente: para um novo mundo, uma nova arte a ser inventada. Não que Tempo de Viver seja a expressão de uma nova arte para um novo mundo. Longe disso. Mas há nesta camada uma carga discursiva interessante, isto é, a ideia de que a arte está permanente sujeita à história, pois, como os pintinhos, é uma coisa viva. Por derivação há ainda uma subcamada do discurso: a ideia de que o ponto de encontro ideal entre história, arte e política não existe. E é bom que assim seja, pois a história não permite encontros com hora marcada.
Notas:
Cf: GAUCHANT, Isabelle. O cinema chinês: da política e da censura à busca da bilheteria (1978 - 2007). In: BAPTISTA, MASCARELO. Mauro, Fernando (orgs.) Campinas, SP: Papirus, 2008.
XUDONG, Zhang. Poética da desaparição: os filmes de Jia Zhangke. Novos estudos. CEBRAP (89) Mar 2011. Tradução de Hugo Mader.
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