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O Autor Tsai


Por Tanael Cesar Cotrim



Caro amigo, Danilo.


Insisto, de antemão, que é a pressão, uma pressão ética de dever moral, pouco prazerosa mas estimulante, que me inclina a uma folha em branco. Pois, para mim, escrever é revelar uma corrupção do corpo, uma insuficiência dos sentidos, um falso controle de emoções contraditórias e paradoxais. Um simulacro mal acabado, derruído. Gosto muito mais, prefiro, anseio, até desejo o momento de flanar pela cidade conversando sobre Abbas Kiarostami, Irmãos Dardenne, Julio Bressane, Jean Claude Bernardet, Jacques Rancière, Estruturalismos, Antropologias, Epicuro, Rocks, Bambas, Rosas ,Noel e Guimarães, Imagem, Olhar, Crítica, Política, Ensaio, enfim...

E se como disse um Iluminista “O cotidiano é uma segunda natureza”, vamos a um método pessoal: Escrivaninha de frente para uma parede branca, caneca de água à esquerda, livros para consulta à direita, papel e lápis. Papel branco, tal qual a parede. O branco e sua luz, e suas ondas, convidam a pensar. Somente após essa luta sem vencedor, que é pensar sem muito rigor metodológico, vou ao computador, mais para editar do que para escrever. Escrever sobre a arte e a obra de Tsai Ming-liang, esse cineasta incrível, esteta sobretudo, que inquieta, estimula e violenta o espírito.

Tsai não é mesmo um niilista, pois para ele, simplesmente, o Homem não é o resultado imutável e natural de um conflito existencial entre seu Ser e sua finitude. O Homem é estando, carregado de sentidos, significações, interagindo com o espaço, o meio físico, através do tempo, atravessado de história. História e tempo que, nos filmes de Tsai, estão subordinados ao espaço, ao corpo humano e aos objetos, matérias expressando e revelando propriedades interiores e exteriores, adquirindo significação pelo contato entre suas formas intrínsecas e o mundo, tempo e espaço em dialética. O que inquieta no cineasta malaio é que essa dialética se instala, ao fim, no signo, um signo imóvel dotado de tempo e história devido ao recorte em movimento do cinema no espaço.

O primeiro plano-sequência de Que Horas São Aí? (2001) é uma construção potente da capacidade do cinema transitar signos. O apartamento é o mesmo de O Rio (1997), mas a mesa de jantar não é mais a quadrada, é uma redonda. A panela de arroz, do mesmo modelo, não é vermelha, é verde. O quadro na parede desaparece. O relógio de pulso dourado redondo do pai de Hsiao Kang foi substituído por um prateado retangular e seu isqueiro agora é vermelho. O filme não precisa elaborar uma temporalidade narrativa, ela está nos objetos. E, se o tempo andou, o mundo mudou, a câmera também aborda o espaço de outra maneira. Não está mais à altura da mesa, mas a meio termo entre a mesa e o chão, apresentando o aquário em outro lugar, com outros peixes. A ação que decorre no plano, fixo, é estimulante à percepção do espectador. O pai sai da cozinha em direção à sala com um prato de arroz, senta-se à mesa. Acende o cigarro, traga. Levanta-se, segue até o banheiro ao lado e pede para o filho sair do banho. O banho, no plano, é só o som de pingos caindo no chão. O som da imagem. Volta à mesa. Traga o cigarro, percebe o ruído de uma goteira na varanda, solta a fumaça pelo nariz, em meditação. Vai à varanda, desloca um vaso com planta doente para assimilar á agua da goteira. Fita o horizonte após outra tragada e convoca sua própria morte. A circulação de signos dentro do plano cinematográfico é violentíssima como experiência estética. A vida é interrompida tal qual o fluxo de uma água que se torna goteira, que não cumpre seu caminho, que pára seu trânsito fluido em dutos para escorrer em espaços inapropriados. Isso é a simetria. A inversão é essa “água morta”, que anuncia a morte do pai, gerar, ou retomar a vida da planta, pois deixa de cumprir sua vida alterada pela “cultura” que a canaliza e cumpre sua função “natural” de contato com a natureza da planta, embora “culturalizada” pelo artefato do vaso.

A relação de Simetria e Inversão dos signos é constantemente elaborada no filme. O pai, que alterou o fluxo da água também teve sua posição alterada no sistema simbólico. Seu corpo virou cinza (pertencente ao mundo do fogo) dentro de uma urna (pertencente a um ritual fúnebre e não mais a um rito da vida) envolvida por tecido laranja (cor quente oriunda da fusão entre o vermelho, extremamente que quente, e o amarelo, fracamente quente). Mas a seguir o espírito dele está presente numa barata que assoma à cozinha, segundo a mãe. Torna-se um inseto, cujo habitat é o duto da água “culturalizada”, um animal não-domesticado, coerente com a incapacidade do homem de domar o mundo dos espíritos, que aparecem por vontade própria. Pois a barata vira alimento para o peixe grande branco grande, domesticado por uma água “culturalizada”(aquário), tal qual os três habitantes da casa, dividindo a vida com outros dois peixes pequenos, laranjas.

Ademais, Hsiao Kangé um vendedor de relógio que vive a atrasar relógios pessoais e públicos em sete horas e vive conforme o fuso-horário de Paris, depois de se apaixonar por uma cliente que tem viagem marcada para a capital francesa. Jovem esta que não consegue se adaptar a Paris, mesmo como turista. Ele atrasa os relógios adiantando os ponteiros. Ela frequenta os lugares sem estar presente. Ele está para o tempo assim como ela para o espaço. Essa relação de presença ausente chega ao ápice quando ele toma um porre de vinho em Taipei que se reverbera nela, vomitando no banheiro de um Café. Ele, no carro, atrai uma prostituta, sinaliza com o farol (visual), realiza o sexo viril e é roubado. Ela, no quarto de hotel, é atraída por uma mulher de Hong Kong no Café, numa conversa (oral), só troca carinhos e deixa o local com a própria mala. Enquanto a montagem do filme ainda apresenta a mãe, possuída por desejo sexual em sessão espiritual com o marido morto, masturbando-se com o travesseiro dele, mediante a luz alaranjada de uma vela. Um sublime exercício estético de Simetria e Inversão dos signos para dar conta da vida esvaziada dos personagens, mais que personagens, seres fictícios, pois se sabe que toda correlação existente na obra é da ordem da ficção, do cinema, do cinema de um artista impressionante.

Penso que Tsai tem referências claras, formais e estéticas com Robert Bresson, que lhe legou a elipse entre planos-sequência como elaboração do tempo. Em Michelangelo Antonioni a relação do sujeito com o espaço e destes com o corte quadrado do plano cinematográfico, a angulosidade do eixo e a dinâmica entre a profundidade de campo e a tela plana. A violência do plano fixo e longo, que convoca o espectador a refletir, sentir, organizar o tempo e inserir a subjetividade no espaço está muito em Chantal Akerman. Lidamos com uma tragédia a nossos olhos e não podemos nada fazer senão nos imiscuir naquele tempo e espaço e construir os sentidos jogados como senhas.

A tradição e as influências, portanto, são elaboradas a partir de uma escolha do próprio autor. Assim, só existem a partir de sua mediação e projeção no futuro. Tsai entende que o cinema é arte do espaço. Formula que quem cria o espaço no cinema é a luz. Criar no sentido de apresentar. Um “Eis que”. “Eis que” que remotamente vai ao passado descortinar Jori Ivens em A Chuva (1929). O espaço ressignificado, pois recortado por uma luz específica de um instante, a chuva. E é para onde foi Tsai em Cães Errantes (2013), mais próximo da estética contemporânea da vídeo-arte e da vídeo-instalação como organismos, artefatos artísticos inseridos e intervindo no instante e no espaço.


E ao que assistimos em Cães Errantes é um ensaio visual sobre o instante no espaço. Pai, filho e filha colocando a margem da cidade dentro do centro da cidade, levando e trazendo os espaços dentro de seus corpos e suas existências. A relação presença-ausente está expandida tanto no corpo que somatiza as arbitrariedades do espaço quanto na cidade que se esforça para repelir esses corpos marginais, transformando-os em meros transeuntes, em placa no caso do pai.

Associações. Em Tristes Trópicos, Claude Lévi-Strauss denominou espírito malicioso o geógrafo francês dos novecentos Pierre Monbeig, por aferir à história e à circunstância do momento da América do Norte com a reflexão quase transformada em aforismo “Da barbárie à decadência sem experimentar a civilização.” Após viver em São Paulo no início da década de 30, o antropólogo francês transformou o mote em outras palavras que não podem servir como cogito: “As cidades do Novo Mundo vão do viço à decrepitude sem conhecer a idade avançada.” O músico Caetano Veloso reposicionou o esquema na canção popular Fora da Ordem, do disco Circuladô de Fulô, de 1992: “Aqui tudo parece que era construção e já é ruína. Tudo é menino, menina, no olho da rua. O asfalto, a ponte, o viaduto, ganindo pra lua. Nada continua.” Pois na Taipei de Cães Errantes de Tsai Ming-liang há barbárie, civilização, decadência, viço, decrepitude, ancestralidade. Sobretudo há construção, lua, viaduto, ruína, menino, menina, ponte, asfalto, olho da rua. Há corpos mijando, cagando, comendo, bebendo, escovando dente, penteando cabelo, fumando, chorando, arrotando, cuspindo, espirrando, dormindo.

A angulosidade do plano e a posição da câmera anunciam: É um ensaio. Os sons diegéticos compõem as imagens caladas. O pai que se assusta com o repolho tingido de olhos, nariz e boca na cama, a “Senhora Repolho” que serve de boneca à filha. Acarinha-o, beija-o, em raiva morde-o, cospe nele o mordido, despedaça-o, arranca-lhes os olhos, come-o, engole-o, acarinha-o, chora sobre ele, rasteja em seus pés. É a realidade. Não é o surreal. Não é a loucura. Não é o devaneio. É a realidade absurda tal qual os absurdos da realidade que são despercebidos. Ele é um homem-placa.

A cidade é a mais importante criação social do Homem, segundo urbanistas. E se a cidade se inscreve no espaço ela cria o homem e é criatura dele ao mesmo tempo, o espaço, portanto, absorve e repulsa o sujeito. No cinema de Tsai esse fenômeno é codificado como a presença-ausente. Cães Errantes é uma investigação do homem no espaço. É o tempo, em instante e duração. O plano-sequência final é um monumento cinematográfico de 22 minutos, em que um homem e uma mulher, meio fictícia, meio real, abordam o espaço fitando um mural, cuja experiência toma o corpo em forma de respiração ofegante, lágrima, choro, suor, poros excitados. O tempo é o mundo quem determina, sua máquina, com o trem cruzando o quadro regularmente cronometrado, os ruídos de motos e carros aparecendo, permanecendo e sumindo na forma de som e a algaravia de uma gente que vai e vem não se sabe de onde para onde, só quando. Tsai Ming-liang é um tremendo cineasta. Maravilhoso artista. Sempre surpreendente. E digo isso calçado de sandálias. Para reverenciar Tsai e seu cinema.


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