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Memória Cinematográfica

Por Tanael Cesar Cotrim


Distópico. Por que Não?


Grossa e até levianamente, pois cinema é cinema, não é literatura, e também não é teatro, nem arte dramática, pode-se dizer que Yasujiro Ozu está para a crônica, assim como Akira Kurosawa para a épica, assim como Hiroshi Teshigahara para o conto, assim como Kenji Mizoguchi para o romance. Romance japonês, desde o Genji Monogatari do século 11, de que o extraordinário livro do escritor Ueda Akinari, Contos da Lua, de 1776, é tributário. O Genji é considerado, por sua estrutura e abordagens narrativas, o precursor do que viria a se constituir séculos depois no ocidente como forma romanesca. E também romance moderno, com suas nuances temporais, seu núcleo narrativo, sua fragmentação da personagem (perspectivas sociológica, cultural, histórica e subjetivas) e sua organicidade como obra de arte ao mesmo tempo independente e interdependente. Desde seu primeiro filme, As Irmãs de Gian, Mizoguchi penetra a realidade de sua cultura, a japonesa, com olhar de quem pretende desmontar um imaginário, constituído em tópica dos valores morais, das relações sociais e das posições como nação diante do tempo histórico. Não há somente uma mera desconstrução, mas uma projeção utópica por trás dos ângulos de abordagem. Como se a utopia interviesse na Tópica ao mesmo tempo negando uma fabricação estilosa da realidade e fundando uma necessidade de transformação. Assentada em pilares de uma cultura violenta, recalcada, se esse é o termo mais apropriado, talvez catártica, em códigos hierárquicos imaleáveis, a sociedade japonesa produziu um patriarcalismo que invadiu a modernidade em construção no país. O núcleo familiar e social centrado no homem, nos arranjos para o homem, nas finalidades em função do homem. A tradicional lealdade, cordialidade, hospitalidade, generosidade, afetuosidade japonesas simplesmente, para Mizoguchi, é um engodo que encobre um inconsciente coletivo permeado de desequilíbrios. Em Mizoguchi, quem incorpora, matiza e reverbera as transformações sociais e morais necessárias são as mulheres, caladas no seu mundo aparentemente autômato. Começam por aquelas que sofrem no real do tecido das relações e são encobertas por brumas espessas do ideário masculino centralizador. E a biografia do cineasta escarificou no corpo e na mente as projeções do mundo da mulher. Rasgou em infortúnio sua infância, emoldurou sua juventude e modelou sua arte. Abandonada pelo pai, a família subsistiu em condições paupérrimas, até que à mãe restou comercializar a filha como gueixa. O corte no córtex de Mizoghuchi foi o ecrã de seu mundo. A narrativa de Contos da Lua Vaga flutua entre o documental e o fantástico. A fotografia marca as diferenças fundamentais e é de um escuro metafísico, sombreando a fantasia, afligindo a realidade. Um monumento do cinema. Se a tese é a Tópica e a antítese é a Utopia, a síntese, na posição de Mizoguchi e do filme na história do cinema japonês, é a Distopia.


Contos da Lua Vaga (1953) Diretor: Kenji Mizoguch Roteiro: Yoshikata Yoda, Matsutarô Kawaguchi e Kyûchi Tsuji Diretor de fotografia: Kazuo Miyagawa


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