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ENSAIO | Qual crítica de cinema?

Atualizado: 18 de nov. de 2022


Imagem: O rolo compressor e o violinista (Andrei Tarkovski, 1961).


Qual crítica de cinema?


Por Danilo Dias de Freitas


A crítica geralmente considera prioritário num filme a temática, devido à sua formação conteudística e sócio ideológica, mas eu não separo a temática da forma utilizada: da forma nasce a idéia (Flaubert) e não há linguagem revolucionária sem forma revolucionária (Maiakovski) e, como o poeta Roberto Piva, só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental[1]

.

Jairo Ferreira[2]


É com este período citado acima, em epígrafe, que Jairo Ferreira finaliza seu texto Cinema: música da Luz. O texto na íntegra veio a público em 1986, por ocasião da organização do livro O cinema segundo a crítica paulista[3]. O curioso é que ainda neste período ressoasse na crítica de cinema brasileira aquilo que Walter Benjamim, em seu ensaio O autor como produtor (1936), considerou um “debate ainda mais antigo e não menos estéril sobre a relação entre a forma e o conteúdo”.

Não menos intrigante é a correlação - corporificada na persona de Roberto Piva - entre “arte experimental” e “vida experimental”. Esta identificação assinalada por Jairo Ferreira remonta às radicais experiências vanguardistas do dadaísmo e do surrealismo, e, por assim dizer, ganha corpo pela última vez na Internacional Situacionista (1957-1972): a “derradeira vanguarda”[4], nas palavras de Anselm Jappe.

O revolucionamento das formas artísticas de que fala Jairo Ferreira, parafraseando o poeta russo Vladimir Maiakóvski, não é outra coisa que a persistência histórica, em outra chave crítica, da união entre vanguarda artística e vanguarda política. Que André Breton e Diego Rivera tenham assinado em conjunto com Leon Trotsky o Manifesto por uma arte revolucionária independente (1938) não é por acaso, portanto.

Quase trinta anos depois do manifesto, ao fazer uma leitura crítica dos conceitos marxianos de valor, dinheiro, trabalho, fetichismo da mercadoria e alienação, mas também em um reencontro original com Hegel e Feuerbach, Guy Debord propõe - sobretudo com a publicação de A sociedade do espetáculo (1967) - um novo paradigma para a relação entre vanguarda artística e vanguarda política, entre arte e vida.

Segundo Anselm Jappe, um dos principais estudiosos do situacionismo e do percurso intelectual e político de Guy Debord, temos o seguinte:


O espetáculo serviria à conservação da sociedade de classes por meio da contínua organização da passividade: o consumo de mercadorias e a ideologia substituem toda ação autodeterminada, as imagens suprimem a realidade. Segundo a filosofia, também a arte se tornou uma componente do espetáculo, porque, nela, os seres humanos contemplam o possível emprego das forças de sua espécie, em vez de realizá-las em seu próprio dia-a-dia – exatamente do mesmo modo que ocorre na religião[5].

Em última instância o situacionismo foi, em suas estratégias de intervenção política, a tentativa de supressão da arte como mais um dos momentos da vida alienada pelo trabalho abstrato e o fetichismo da mercadoria. Ao contrário dos surrealistas do final da década de 20, que invocavam a poesia a serviço da revolução proletária, Debord e os situacionistas propunham a revolução a serviço da poesia e da vida.

Ainda segundo Anselm Jappe:


Aqui, a “poesia” é sempre vista como uma forma de vida, e não como uma espécie de tesouro de formas. (…) A cultura e a revolução da linguagem das formas na arte moderna deveriam, antes do mais, servir como modelo de uma dissolução das formas tradicionais de vida, bem como de invenção de novas formas. Sendo que isso, uma vez mais, segundo a argumentação de Debord, teria de ser organizado como processo revolucionário, pois, do contrário, tais processos de dissolução serviriam apenas à reorganização do espetáculo[6].

O anti-cinema de Debord, para ficarmos apenas em um dos campos de intervenção do situacionista francês, foi antes uma estratégia política para fazer da vida uma arte, superando, portanto, a arte como alienação espetacular, que o uso formal dos supostos transcendentais do cinema (repetição e paragem), como advoga Giorgio Agambem em ensaio de 1995, O cinema de Guy Debord, ao compará-lo com Godard.

Mas o que está realmente em jogo aqui?

Em 2005 veio a público, no Brasil, o livro Walter Benjamim: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”, de Michael Löwy. No capítulo de introdução ao livro, intitulado Romantismo, messianismo e marxismo na filosofia da história de Walter Benjamim, ao se referir a ensaios como Experiência e pobreza, O autor como produtor e A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Michael Löwy escreve o seguinte: “durante um breve período “experimental”, entre 1933 e 1935, a época do Segundo Plano quinquenal [soviético], alguns textos marxistas de Benjamim parecem próximos do “produtivismo” soviético e de uma adesão pouco crítica às promessas do progresso tecnológico”[7].

O que escapa a Michael Löwy, pelo menos quanto ao ensaio O autor como produtor, é algo de totalmente original na crítica de arte até então, da qual falaremos adiante. Por enquanto basta enfatizar que Benjamim, ao combater o “ativismo” e a “nova objetividade”, dois dos movimentos literários mais importantes da “inteligência burguesa de esquerda alemã”, usa o exemplo bastante caricato do escritor “operativo”. O escritor modelo de Benjamim, Sergei Tretiakov, é aquele que em uma situação social específica - coletivização total da agricultura soviética (1928) - torna-se um militante de partido: organizador, agitador, propagandista.

Também não são raros os momentos em que Benjamim reforça a definição de uma obra com a tendência justa: “em vez de perguntar: como se vincula uma obra com as relações de produção da época? É compatível com elas, e portanto reacionária, ou visa sua transformação, e portanto revolucionária?” [8]

Nem raros são os momentos em que define (Brecht é o modelo aqui) o lugar do intelectual, do artista, enfim, do autor como produtor, em função de sua posição produtiva na luta de classes: “e assim voltamos à tese inicial: o lugar do intelectual na luta de classes só pode ser determinado, ou escolhido, em função de sua posição no processo produtivo”.

Mas o que há de absolutamente original neste ensaio é que Benjamim, e depois Debord e os situacionistas (com as práticas da Dérive e Détournement), descreve a função do artista não como simples produção de formas e conteúdos estéticos, mas como agente político da “partilha do sensível”, tal qual Jacques Ranciére tem teorizado contemporaneamente. Em O autor como produtor, Benjamim diz: “O Estado soviético não expulsará os poetas, como o platônico, mas lhes atribuirá tarefas – e por isso mencionei no início a República de Platão – incompatíveis com o projeto de ostentar em novas ”obras-primas” a pseudorriqueza da personalidade criadora”[9].

A menção por parte de Benjamim à República de Platão não é sem razão. A expulsão do poeta na República de Platão não se deve ao fato de que este seja um fabricador de mímeses ou de simulacros, mas porque é um ser duplo, que desorganiza a “partilha do sensível”. O poeta é aquele que confunde os limites da divisão social do trabalho: “o fazedor de mímesis confere ao princípio privado do trabalho uma cena pública. Ele constitui uma cena do comum com o que deveria determinar o confinamento de cada um ao seu lugar. É nessa re-partilha do sensível que consiste sua nocividade, mais ainda do que no perigo dos simulacros que amolecem as almas”[10].

O poeta deve ser expulso, portanto. Na República platônica tudo deve estar em seu lugar: o artesão está excluído, segundo a divisão social do trabalho, da esfera política; o filósofo, também segundo um rigoroso processo de divisão do trabalho, está excluído da esfera privada do trabalho artesanal e vice-versa.

A função social do artista, propõe Benjamim em alusão à República de Platão, deve ser deslocada. Deslocada de onde? De sua posição técnica e produtiva na organização capitalista da sociedade. O artista e o intelectual devem ser não meros fabricantes de formas e conteúdos estéticos, mas atores conscientes de suas posições políticas na partilha do sensível.

Benjamim diagnostica, portanto, o tipo de posição que o artista vem ocupar na fabricação política do sensível em uma nova comunidade inaugurada pela Revolução Bolchevique (1917).

Eis porque, nos últimos parágrafos de A partilha do Sensível, Ranciére pode dizer:


Mais atentos que os desmistificadores do século XX, os críticos contemporâneos de Flaubert assinalam o que vincula o culto da frase à valorização do trabalho dito sem frase: o esteta flaubertiano é um quebrador de pedras. Arte e produção poderão se identificar no tempo da Revolução Russa porque dependem de um mesmo princípio de repartição do sensível, de uma mesma virtude do ato que inaugura uma visibilidade ao mesmo tempo que fabrica objetos. O culto da arte supõe uma revalorização das capacidades ligadas à própria idéia de trabalho. Mas esta é menos a descoberta da essência da atividade humana do que uma recomposição da paisagem do visível, da relação entre o fazer, o ser, o ver e o dizer. Qualquer que seja a especificidade dos circuitos econômicos nos quais se inserem, as práticas artísticas não constituem “uma exceção” às outras práticas. Elas representam e reconfiguram as partilhas dessas atividades.[11]

O crítico de cinema é também um fabricante do sensível, de modo complementar ao do cineasta, na medida em que reconfigura e recompõe a paisagem do visível. Ao selecionar, dizer, escrever, o crítico de cinema se insere nas práticas políticas de partição e separação do que se dá a ver, fazer, dizer.

Isso não exclui o fato, antes reforça, de que a crítica de cinema comprometida com o mercado pratique uma configuração do visível balizada sobretudo pelos parâmetros do mercado.

Qual nossa posição crítica, política e estética, portanto?

A auto ilusão de êxito, para a crítica de cinema mercadológica, está fundada na divisão social, técnica e produtiva do trabalho. Neste caso, o crítico de cinema não é diferente de um rotineiro consultor: só que atua no mercado dos produtos espirituais.

A nós não interessa, portanto, uma palavra definitiva sobre um filme. Muito menos nos interessa a lista dos 10, 20 ou 100 melhores filmes de todos os tempos. Tampouco seria o caso de dar uma, duas ou cinco estrelas para um filme.

A nós interessa extrair dos filmes, não como especialistas, mas como amadores, o que há de tensão entre o que se dá a ver e o que se esconde na duração de um plano. A crítica deve ir ao encontro de um filme para fazê-lo escapar de seus limites óticos e sonoros. Deve fazê-lo exprimir-se em outros signos e conjugações temporais. Deve feri-lo, arrancá-lo do senso comum para que um outro sentido possa vir à tona.

Não à enxurrada de adjetivos para elogiar uma fotografia ou uma direção de atores tecnicamente bem-acabada, mas pôr em crise a relação do filme com a crítica.

Problematizar, eis a questão.

Mas do que se trata o nosso amadorismo?

É antes de tudo uma fuga a qualquer julgamento normativo. Isso certamente não exclui o julgamento, mas ele não se dá por pré-conceitos estético-políticos. O julgamento deve se dar, ao contrário, no contato direto com os filmes.

Depois, o amadorismo que reivindicamos é a recusa de uma crítica supostamente especializada; como se o crítico estivesse mais apto que outra pessoa a ver, experimentar e escrever sobre um filme.

Nosso amadorismo não é uma recusa ao posicionamento estético e político, mas a certeza de que a “partilha do sensível” deve ser a mais democrática possível. Afinal, poderíamos parafrasear Jean-Claude Bernardet: “há muitas maneiras de falar da lua, não apenas a do astrônomo”[12].




  1. [1] Org: CAPUZZO, Heitor. O cinema segundo a crítica paulista. Nova Stella Editorial. São Paulo. 1986. p.88. [2] Jornalista, crítico, cineasta e escritor. Nasceu em 1945, na cidade de São Paulo. Coordenador do Cineclube Dom Vital (1964/66). Crítico dos jornais São Paulo Shimbum (1966/1972) e Folha de São Paulo (1976/1980). Editor da revista Metacinema(1974). Realizador de curtas, médias e longas-metragens (O Guru e os Guris/1973, Horror Palace Hotel/1978, O vampiro da Cinemateca/1977). Roteirista em O Pornógrafo, de João Callegaro. Assessor de imprensa da Embrafilme em São Paulo (1982/86). Autor do livro Cinema de Invenção. [3] Segundo Heitor Capuzzo, organizador desta coletânea de textos escritos por críticos paulistas, o objetivo deste livro “é pouco pretensioso. Apenas procura detectar as várias correntes do pensamento crítico cinematográfico paulista, aproximando os profissionais do público. São Paulo, 12 de agosto de 1986. [4] JAPPE, Anselm. Os situacionistas e a superação da arte: o que resta disso após cinqüenta anos? EXIT n° 8. 2011. O texto pode ser encontrado na íntegra em: http://www.obeco-online.org/anselm_jappe.htm [5] JAPPE, Anselm. Os situacionistas e a superação da arte: o que resta disso após cinqüenta anos? EXIT n° 8. 2011. O texto pode ser encontrado na íntegra em: http://www.obeco-online.org/anselm_jappe.htm [6] Idem. [7] LÖWY, Michael. Walter Benjamim: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Boitempo. São Paulo. 2005. p. 26. [8] BENJAMIM, Walter. Magia, Técnica, Arte e Política. Brasiliense. São Paulo. 2011. p. 122. [9] BENJAMIM, Walter. Magia, Técnica, Arte e Política. Brasiliense. São Paulo. 2011. p. 131. [10] RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e Política. Editora 34. São Paulo. 2018. p. 64-65. [11] RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e Política. Editora 34. São Paulo. 2018. p. 68-69. [12] Org: CAPUZZO, Heitor. O cinema segundo a crítica paulista. Nova Stella Editorial. São Paulo. 1986. p. 40.

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