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ENSAIO | A Qualquer Custo. Ainda é possível dizer western?

Atualizado: 18 de nov. de 2022


A Qualquer Custo [Hell or High Water, 2016, David Mackenzie].

Por Danilo Dias de Freitas


How small a part of time we share till we hear the sound of wings? I'm lost in the dust of the chase that my life brings.[1]


Nick Cave e Warren Ellis


A Qualquer Custo [Hell or High Water] é um filme de 2016. Foi roteirizado por Taylor Sheridan e dirigido por David Mackenzie. Uma rápida pesquisa no google e a primeira classificação para o gênero do filme é Western/Thriller. A Wikipédia, por sua vez, nos diz que se trata de um neo-western heist film[2]. No IMDb encontramos o seguinte: Ação, Crime, Drama, Thriller, Western.

O conceito de “gênero cinematográfico” aparece aqui em seu caráter mais corriqueiro. Como categoria apta a facilitar a vida do consumidor, seja ao percorrer as prateleiras físicas de uma videoteca, seja ao percorrer a lista de um serviço de Streaming.

Mas o “gênero cinematográfico” nasce mais em função da absorção da cadeia cinematográfica pela lógica de acumulação do capital do que por motivos de classificação estética de um filme.

Essa absorção não foi o resultado inexorável de uma suposta ligação natural e a-histórica entre a evolução do aparato técnico do cinema e sua “vocação industrial”. A evolução do aparato técnico cinematográfico não deve ser ignorada, mas ela só é importante na medida em que apareça no seu devido lugar histórico. A “vocação industrial” do cinema é antes uma conseqüência da lógica de acumulação do capital do que um resultado histórico da evolução linear de seu aparato técnico-produtivo.

É intrínseco ao funcionamento da lógica do capital que todas as esferas de produção e reprodução da vida sejam incorporadas à forma-mercadoria. Mas não é só, haja vista que as mercadorias e o mercado existem desde muito tempo antes do surgimento do capitalismo. O que há de novo no capitalismo em relação aos modos de produção que o precedeu não é apenas que todas as coisas essenciais à vida tendam a se transformar em mercadoria, mas que só possam ser obtidas através do mercado. Pensemos em artistas do renascimento como Michelangelo, Rembrandt e Leonardo Da Vinci. Eles trabalhavam sob encomendas realizadas por figuras da nobreza ou altos funcionários do Estado e da Igreja. A encomenda desses patrões não se dava, porém, com o intuito de abastecer um mercado universalizado. Para esses patrões ou mecenas, o valor da obra de arte não estava totalmente desvencilhado de seu valor de uso (estético). Com o capitalismo e a universalização do mercado, ao contrário, há uma ruptura definitiva entre o valor de uso de uma obra de arte e seu valor de troca. Para a lógica da acumulação do capital, o valor de uso de uma mercadoria é apenas um detalhe indesejável, ainda que intransponível, da realização de seu valor de troca.

O fenômeno de absorção do cinema pela lógica do capital ocorre de modo ainda mais intenso após a primeira guerra mundial, período em que os monopólios e os capitais financeiros se consolidam com a mesma voracidade das indústrias bélicas. Aliás, não seria possível contar a história do cinema sem contar a história do imperialismo e da moderna indústria bélica[3]. É a partir do pós-guerra que as diversas indústrias nacionais do cinema, especialmente a indústria européia, única capaz de alguma resistência naquele momento, perdem para a indústria cinematográfica estadunidense sua então relativa soberania interna. A consolidação desta hegemonia não se deu sem contradições e lutas defensivas, inclusive dentro do próprio território americano. Mas não é o objetivo deste ensaio traçar a história do desenvolvimento da indústria cinematográfica estadunidense e suas contradições no plano interno e externo ao seu território.

Por enquanto basta dizer, de modo bastante telegráfico, que os monopólios e trustes, conscientes de sua missão histórica, agiam para maximizar os lucros e eliminar/absorver seus concorrentes menores. Para tanto lograram organizar a cadeia cinematográfica sob rigorosa especialização do trabalho. Daí o surgimento dos gêneros cinematográficos que nada mais são que o resultado histórico e estético de uma estandardização típica das produções em série dedicadas ao mercado de massas.

Bem entendido, a organização industrial da produção cinematográfica e a especialização do trabalho criaram as condições materiais para a produção do cinema de gênero. Recuperar a genealogia histórica dos gêneros cinematográficos, identificando-os à absorção do cinema pela lógica de acumulação do capital não significa, no entanto, fazer coro com a defesa de uma suposta liberdade artística em abstrato; como se o cinema estivesse excluído da divisão social do trabalho e livre de suas relações com a economia e a sociedade de seu tempo.

Acontece que mesmo dentre os filmes de gênero, produzidos em sua grande maioria sob o constrangimento dos grandes grupos financeiros, há muitíssimos de valor estético e histórico inestimáveis. Mas estes são sempre exceções. A grande maioria do cinema de gênero foi e ainda é feito para a indústria do entretenimento, o que nos obriga a não exigir grandes feitos estéticos e históricos deste tipo de filmes. Isto não significa que o cinema não seja entretenimento. Toda arte pode ser entretenimento, mas nem todo entretenimento é arte.

As exceções do cinema de gênero, como se deu nos westerns de John Ford, Fritz Lang, King Vidor, Howard Hawks, Michael Curtis, Raoul Walsh, Anthony Mann, Budd Boetticher, Nicholas Ray, exigiu que a crítica tratasse de seus fundamentos estéticos e desdobramentos históricos com maior cuidado e rigor, isto é, para além de sua definição como produto comercial. É o que buscaremos fazer mais a frente com o filme de David Mackenzie, A Qualquer Custo, também uma exceção.

Tal como supõe a crítica interessada em resoluções rápidas para problemas complexos, os “gêneros cinematográficos” seriam apenas conceitos usados para designar um conjunto de convenções narrativas e estéticas que determinados filmes compartilham entre si.

Do western poder-se-ia dizer, segundo esta tradição, que são filmes com tiroteios ritualizados. Filmes em que homens bons e maus se confrontam na velocidade de seus gatilhos.

André Bazin, que não se encaixa nesta primeira tradição, mas em uma segunda, digamos, ontológico-normativa[4], dedicou três importantes ensaios ao Western. São eles: O western ou o cinema americano por excelência (1953), A evolução do Western (1955) e Um western exemplar: Sete homens sem destino (1957).

Estes ensaios só podem ser entendidos em sua individualidade se também forem entendidos em seu conjunto. Mas, de qualquer modo, o primeiro ensaio é sem dúvidas o mais importante dos três. Em O western ou cinema americano por excelência, escrito originalmente como prefácio ao livro homônimo de Jean-Louis Rieupeyrout, Bazin chega a traçar, quase como em uma profecia, o futuro percurso do Western.


Ele [o Western] sofreu e sofrerá ainda influências alheias (as do romance noir, por exemplo, da literatura policial ou das preocupações sociais da época) ... Em vez de lastimar as contaminações, (...) cada influência age sobre ele como uma vacina. O micróbio perde, com seu contato, sua virulência mortal. (BAZIN, 2014, p. 237)

Neste mesmo ensaio, Bazin aponta o profundo desconhecimento do gênero por parte dos críticos de seu tempo, pois mantinham-se aferrados ao preconceito “solidamente enraizado segundo o qual o Western só poderia contar histórias de uma grande puerilidade, fruto de uma invenção ingênua e sem a menor preocupação com a verossimilhança psicológica, histórica ou até mesmo meramente material” (BAZIN. 2014, p. 239-240).

Bazin procura mostrar que “as relações da realidade histórica com o western não são imediatas e diretas, mas dialéticas” (BAZIN. 2014, p.240). Também é neste texto que Bazin identifica os principais mitos históricos do western. A mulher como “vestal das virtudes sociais”, o índio como vestígio do barbarismo a ser expurgado pelo homem cristão e branco e a tipicidade de sua mise-en-scéne; pois, avesso ao close e ao plano americano, seria por excelência o gênero dos travellings e panorâmicas “que negam os limites da tela e restituem a plenitude do espaço” (BAZIN. 2014, p. 244).

Por último, é neste texto que Bazin extrai as duas principais singularidades do western: 1) seguindo a tradição filosófica da divisão dos gêneros poéticos, Bazin identifica o Western ao universalismo épico e trágico, pois, “os heróis épicos e trágicos são universais. A guerra de secessão pertence à história do século XIX, o western fez da mais moderna das epopéias uma nova guerra de Troia. A marcha para o Oeste é nossa odisséia”. (BAZIN. 2014, p. 246); 2) Bazin mostra qual o tipo de dialética histórica envolve as concepções de moralidade e justiça que dão base narrativa ao Western.

Essa moral é a do mundo onde o bem e o mal, em sua pureza e necessidade, existem como dois elementos simples e fundamentais. Mas o bem em estado nascente engendra a lei em seu rigor primitivo, a epopéia vira tragédia pelo aparecimento da primeira contradição entre o transcendente da justiça social e a singularidade moral, entre o imperativo categórico da lei, que garante a ordem da futura Cidade, e aquele não menos irredutível da consciência individual. (BAZIN. 2014. p. 244-245).

Na permanente luta entre exceção e regra em que transita a historicidade do western, a moral e a honra individual podem valer mais do que a lei. A lei se imbrica com a norma e a limitação, enquanto a justiça relaciona-se aos desejos individuais e à superação da lei como formalismo de um ordenamento social muitas vezes injusto. As contradições entre lei e justiça, personificadas em homens geralmente opostos na divisão do poder instituído, são a própria substância do tecido moral e social do Western.

Mas que moral é essa? Bazin nos responde:


Admirável ilustração dramática da parábola do fariseu e do publicano, No tempo das diligências, de John Ford, nos mostra que uma prostituta pode ser mais respeitável do que os beatos que a expulsaram da cidade e do que a mulher de um oficial (...) Um fora da lei perseguido, por algum ajuste de contas passado e provavelmente futuro, dar provas de lealdade, de generosidade, de coragem e de delicadeza, enquanto um banqueiro considerável e considerado foge com o cofre. (BAZIN. 2014, p. 243)


A mocidade de Lincoln [Young Mr. Lincoln, 1939, John Ford]

Pensemos em outro filme de Ford, A mocidade de Lincoln [Young Mr. Linconl, 1939]. É curioso que este filme tenha sido tratado por Bazin de modo tão rápido, pois, quanto à “moral que lhe serve de base e o justifica”, tal qual prescrito pelo teórico francês, este filme é um western dos pés à cabeça.

Neste filme, a grandeza moral do jovem Lincoln provém de sua humilde disposição - ao contrário da maioria dos homens identificados ao poder – a um gesto de delicadeza, ou mesmo de moderado uso da força para que a lei não seja uma forma temporal vazia.

Por um artifício de focalização narrativa no qual se inclui o espectador na tensão dramática, ora fazendo com que este saiba mais que as personagens, ora fazendo com que as personagens saibam mais que o espectador, o filme coloca em cena a dialética histórica e conflitiva entre lei e justiça.

O jovem Lincoln é o portador moral da ordem e, por isso mesmo, personifica a reconciliação universal entre lei e a justiça. Aqui surge outra vez a parábola do fariseu e do publicano. Enquanto os respeitáveis homens da lei e dos salões de baile da classe dominante, cheios de si, importunam e chantageiam uma pobre mãe, Lincoln, um filho do campesinato pobre, advogado inexperiente e pouco afeito às honrarias de fachada, desvenda o assassinato sem a necessidade de subterfúgios extra-oficiais.

E se Lincoln decide representar no tribunal aquela humilde família, não sem hesitação no íntimo de seu ser, é por uma espécie de intuição moral da justiça. Isso é importante. O herói no Western age quase sempre às cegas diante do perigo que corre, como que guiado unicamente por uma rara espécie de confiança e intuição moral da justiça.

Resultado final: a intuição do jovem Lincoln se demonstra correta. O culpado pelo assassinato é o próprio delegado.

A moral que da base e justifica o Western, perseguindo as pistas de Bazin, é integralmente corporificada no jovem Lincoln. Lei e justiça, ainda que não se identifiquem no tecido social de modo prático e imediato, devem convergir ao máximo e, sempre que possível, em personagens capazes de fazer o bem pelo bem, em sua pureza e necessidade, e não por uma questão de hierarquia social ou impulso egoísta.

Logo no início do filme, Lincoln aparece lendo um livro sobre leis, mas deitado ao pé de uma frondosa árvore, com as pernas para cima. Seria preciso esse gesto aparentemente obtuso, segundo o próprio Lincoln, para entendê-las. A carga simbólica é evidente. Fazer justiça não é uma questão de mera aplicação da lei, mas de ser capaz de ver os fatos de perspectivas variadas, ainda que estes fatos sejam aparentemente inquestionáveis.


***


Outro fato curioso é que o imaginário segundo o qual o western não passaria de um gênero pueril e desconectado da história e, nos casos de maior rigor crítico, apenas uma “transfiguração ideológica que recobre o violento processo de acumulação capitalista na américa” (XAVIER. 2007, p. 148), permanece ainda hoje. É o que se pode verificar, neste último caso, no tratamento que Ismail Xavier dá ao gênero em seu livro Sertão Mar (2007).

Não seria o caso de aprofundarmos as assertivas e os problemas desse tratamento, sobretudo porque neste caso o Western serve a Ismail Xavier somente para enfatizar, ora pela aproximação, ora pelo distanciamento, o modo como Glauber Rocha (Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1964), ao contrário de Lima Barreto (O cangaceiro, 1953), subverte o gênero.

É certo que o tratamento dado por Ismail Xavier ao tema é muito mais complexo do que o que pinçamos aqui. Mas o que nos interessa, tão somente para efeito de recorte e matização, é destacar o ponto em que Ismail Xavier parece endossar o que Bazin critica, a saber, que a ligação do Western com a história não é imediata ou simplesmente ideológica (falsa representação da realidade), mas dialética.


Vejamos o que diz Ismail Xavier:


Tal como num épico de John Ford ou Howard Howks, o filme de Lima Barreto é marcado por aquela visão etnocêntrica que olha para o Outro no caso, ao invés do índio, o sertanejo, num impulso de sincera homenagem, mas a partir de uma distância que se denuncia a cada passo pelo próprio tom e pela forma como se organiza o discurso. Enquanto no filme de Glauber o sertão é um mundo dentro da história, a experiência camponesa é processo e a violência é o momento da práxis que aprimora a sociedade, em O cangaceiro sertão é o mundo fora da história, depósito de uma rusticidade quase selvagem que o progresso, vindo exclusivamente de fora, tende a eliminar. (XAVIER. 2007, p. 150-151).

Ismail Xavier cita Glauber como contraponto a Ford, Hawks e Lima Barreto exatamente porque para estes três cineastas o Western não seria apenas um mundo distante da história, mas um mundo fora da história. Não há dúvidas de que os conflitos do Western – mesmo em Ford – muitas vezes transitem no terreno melodramático e puramente metafísico, com seus valores eternos de bem e mal. Mas não é sempre.


Sangue de Heróis [Fort Apache, 1942, John Ford]

Mesmo em Sangue de Heróis [Fort Apache, 1948], no qual o discurso sobre o Outro parece corroborar a análise de Ismail Xavier, o tratamento ao índio não é monolítico. É verdade que há uma grande dose de paternalismo no filme, expresso nitidamente quando o chefe guerreiro dos índios diz ter sido traído pelo Grande Pai estadunidense. Mas neste filme, criticado pelo próprio Bazin por se enquadrar no que ele denominou metawestern[5], além da grande riqueza de detalhes e nuances conflitivas entre as personagens do Leste e do Oeste, há uma decisiva tensão entre as personagens de Henry Fonda (Coronel Thursday) e John Wayne (Capitão Collingwood).

Esta tensão gira exatamente em torno do tratamento e do discurso matizado sobre o Outro (índio). E neste caso não se trata de mero arranjo conflitivo, isto é, artifício formal obediente às regras do gênero. Ao contrário, é a expressão narrativa das contradições históricas concretas envolvidas na marcha para o oeste. Ao contrário do que neste caso pensa Bazin, a força do filme vem justamente da capacidade de figurar com grande riqueza os conflitos em sua dramaticidade histórica mais concreta.

O caráter ontológico-normativo da teoria de Bazin muitas vezes o impede de levar às últimas conseqüências os conceitos mais destoantes de sua teoria geral do cinema; a relação dialética entre a história e a teoria dos gêneros poéticos.

Sangue de heróis é um desses casos em que o western se relaciona com a história e a teoria dos gêneros poéticos do modo mais dialético possível, ainda que Bazin não reconheça. É que Bazin, em nome de uma suposta pureza do gênero, exige que a história seja apenas matéria do western e nunca sua temática. Eis a contradição mais evidente do modelo baziniano: o western é identificado à epopéia, mas as personagens devem nos interessar apenas por seus dramas individuais, “por aquilo que lhes acontece, e tudo que lhes acontece pertence a temática do western”. (BAZIN. 2014, p.253).

Bazin identifica o western ao épico, mas exige drama[6]. Bazin acerta na relação dialética do western com a história, mas erra ao exigir apenas drama desta relação.

O caráter épico de Sangue de Heróis não aparece como forma temporal vazia, codificada segundo regras fixas dos gêneros poéticos, mas como conteúdo histórico e social sedimentado[7]. A afetação e a irracionalidade com que a personagem de Henry Fonda (Coronel Thursday) se comporta é antes uma amostra da tipicidade[8] desta personagem histórica do que mera excentricidade barroca ou tese social estranha à pureza do Western, como quer Bazin.

A maior racionalidade e destreza com que Collingwood (John Wayne) - um homem típico do Oeste - se coloca diante dos problemas concretos da vida provém não só do fato de possuir maior conhecimento geográfico do Fort Apache, de ser versado na cultura indígena e por sua disposição ao reconhecimento da humanidade do Outro, mas especialmente por não estar ligado ao poder da mesma forma que Thursday.

Trata-se de realismo histórico, de riqueza de detalhes na figuração dos costumes locais, familiares e das lutas de classes, e não de tese social. Os filmes de tese geralmente apresentam um problema concreto (social, econômico, etc) e o resolvem de forma idealista, dando uma síntese pré-fabricada ao problema, ainda que isso signifique grande deformação das tendências concretas da realidade. Não é o que acontece em Sangue de Heróis.

Collingwood é potencialmente o futuro, menos arbitrário, mais democrático e racional, ainda que preso às engrenagens de poder vigente naquele momento histórico. Aqui está a astúcia de Ford: Collingwood expressa, em gérmen, o futuro; mas, dialeticamente, não deixa de ser um homem de seu tempo, de sua classe social, etc.

Feitas essas distinções, chegamos ao ponto principal.

O que o filme A qualquer custo pode nos dizer se o comparamos à crítica baziniana do western?

Por mais que Bazin defina as especificidades do western de maneira não sistematizada, há uma grande convergência no sentido de identificar o gênero à epopéia:


Cada um deles [os mitos do Western], no fundo, não faz mais que especificar, através de um esquema dramático já particular, o grande maniqueísmo épico que opõe as forças do Mal aos cavaleiros da justa causa (...). Assim, encontramos na origem do western uma ética da epopéia e mesmo da tragédia. (BAZIN. 2014, p. 242)

A Qualquer Custo [Hell or High Water, David Mackenzie, 2016]

A que se resume esta ética da epopéia e da tragédia?

Resume-se à já mencionada resolução narrativa das tensões entre moral individual, lei e justiça. A Qualquer Custo, por mais que se movimente em terreno moderno e incorpore características dos filmes de assalto, não trata de outra coisa que a justiça sendo feita por um homem moralmente respeitável, ainda que fora da lei.

Os bancos são os vilões aqui. E o acerto de contas final não se dará sem consumir, de modo trágico, vidas inocentes. Todas as referências ao western clássico aparecem: o translado do gado, a linha do trem, a tipicidade do homem do oeste, as buscas e perseguições, os extensos travellings e panorâmicas, etc. E, mais importante, os mitos e a ética da epopéia de que fala Bazin também reaparecem: 1) as mulheres são sempre dignas do respeito de Toby (Chris Pine), o herói fora lei, sobretudo as socialmente desvalidas; 2) ao contrário de Tanner (Bem Foster), seu irmão e comparsa, Toby é guiado por um forte senso de justiça - mesmo quando arquiteta e pratica um crime; 3) Toby é calmo, inteligente, parcimonioso, além de guiado por nobres sentimentos familiares; 4) as instituições não são capazes de fazer justiça porque se movimentam nos limites formais da burocracia e da lei, e, portanto, alheias às contradições da vida concreta; 4) Marcus (Jeff Bridges), o xerife, não só por astúcia e coragem, mas sobretudo por sua integridade moral é o único credenciado à polícia e juiz ao mesmo tempo.

Por último e mais importante: o xerife, prestes a se aposentar, é uma figura do passado, potencialmente ultrapassada. Todos ao seu redor fazem questão de lhe lembrar o quão antiquado é seu comportamento e que em breve estará afastado das ruas. Por efeito de contradição, todos à sua volta parecem mais adaptados aos tempos modernos, inclusive seu parceiro e potencial substituto. Que seu parceiro tenha ancestralidade indígena não é por acaso.

Nas entrelinhas do filme aparece uma problemática: estaria o western, com seus mitos clássicos, datado?

Não é o que parece.

O xerife se aposenta e é substituído por uma burocrata. Que sua substituta seja uma mulher também não é por acaso. Seu parceiro está morto. As instituições não são capazes de resolver o crime. Só o xerife é capaz, conforme sugere o filme, de ir até o fim na resolução do conflito; porque é um verdadeiro Texas Ranger, à moda antiga, astuto e corajoso o suficiente para transcender o imperativo categórico da lei e, por isso mesmo, moralmente apto ao “olho no olho” do duelo final.

O duelo é resolvido de homem para homem, como manda o figurino do gênero. O último plano do filme é tão característico quanto sugestivo. A câmera, depois de aliviar o espectador da tensa resolução do conflito sem tiros, sobe ao céu e volta à terra, indicando que o passado épico e trágico não é aquilo que foi e deixou de ser.

A Qualquer Custo nos lembra que o passado é, ao contrário, aquilo que nunca deixa de ser. O passado é aquilo que insiste, que subsiste, ainda que dialeticamente suspenso e em vias de se atualizar. Portanto, sim, ainda é possível dizer Western ou o cinema americano por excelência.

NOTAS:

[1] Trecho de Dust of Chase (Ray Wylie Hubbard), uma das músicas que compõem a trilha sonora original de A Qualquer Custo, realizada por Nick Cave e Warren Ellis. [2] Essa é uma definição híbrida de gênero, já que associa um gênero clássico (western) a um subgênero, o filme de assalto (heist). Este subgênero baseia-se em assaltos que fracassam em razão das falhas pessoais das personagens. [3] O já clássico Guerra e Cinema, de Paul Virilio, esmiúça não só a estreita ligação histórica da moderna indústria bélica com a indústria do cinema, mas sobretudo em que medida a guerra é uma questão de percepção, de representação estética, de cinema, portanto. [4] Ensaios como Ontologia da imagem fotográfica, Montagem Proibida, Teatro e Cinema, Pintura e Cinema, O realismo cinematográfico e a escola italiana da liberação, dentre outros, indicam uma busca ontológica do específico fílmico por parte de André Bazin. Haveria para Bazin, portanto, uma essência cinematográfica extraível da relação mecânica do aparato cinematográfico e a realidade. Daí o caráter normativo de sua teoria do cinema. Mais detalhes em O realismo revelatório e a crítica à montagem: o modelo de André Bazin. In: XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Paz e Terra. São Paulo, 2014. [5] “Chamarei por convenção metawestern o conjunto de formas adotadas pelo gênero depois da guerra. (...). Digamos que o metawestern é um western que teria vergonha de ser apenas ele próprio e procuraria justiçar sua existência por um interesse suplementar: de ordem estética, sociológica, moral, psicológica, política, erótica..., em suma, por algum valor extrínseco ao gênero e que supostamente o enriqueceria. (BAZIN. 2014, p.249). [6] Aqui o “drama” deve ser entendido como narrativa fechada em si mesma, autônoma, que não representa algo exterior a si mesma. No drama, nenhuma instância ou referência narrativa externa deve se sobrepor à existência ficcional das personagens e seus diálogos. Estes, por sua vez, tem de se relacionar apenas entre si e nunca se dirigirem aos espectadores. Daí as narrativas históricas não caberem no modelo do drama, pois supõem referências externas aos acontecimentos puramente ficcionais. Sangue de heróis não se encaixa no modelo do drama, pois foi inspirado pela última batalha de Custer. Para mais detalhes, consular Five Westerns. In: GALLAGH, Tag. The Man and His Films. Berkeley: University of California Press, 1986. [7] O ensaísta e teatrólogo húngaro Peter Szondi - seguindo a tradição hegeliano-crítica dos gêneros poéticos - leva os conceitos mais fundamentais dos gêneros poéticos até às últimas conseqüências dialéticas. A imagem da “forma estética” como sedimentação de “conteúdo social” é sugestiva. A sedimentação é um processo químico em que a saturação de uma mistura de componentes distintos leva à precipitação de um desses componentes. A forma estética, segundo Szondi, é uma saturação histórica; uma sedimentação de conteúdos temático-sociais. Portanto não haveria mais, depois de Hegel, a possibilidade de normatização da relação entre forma estética e conteúdo temático-social. Em outras palavras, não haveriam mais formas normativas para tratar de temáticas narrativas. Esses dois polos enunciativos, o da forma e o do conteúdo, entrariam em contradição permanente. As antinomias internas em cada obra de arte específica, isto é, as contradições entre enunciados formais e enunciados de conteúdo, indicam um ao outro, dialeticamente, os limites e as possibilidades de superação de sua historicidade. Mais detalhes em: SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno [1880 – 1950]. São Paulo. COSACNAIFY. 2001. [8] O conceito de tipicidade deve ser aqui entendido tal qual elaborado por György Lukács em sua extensa teoria literária e estética. Para Lukács, a tipicidade de uma personagem histórica resume-se à união dialética entre o particular e o universal; entre a singularidade individual humana e as tendências universais próprias do desenvolvimento histórico e social na qual essa personagem está inserida. Para mais detalhes, consultar: A fisionomia intelectual dos personagens artísticos. In: LUKÁCS, György. Marxismo e teoria da literatura. São Paulo. Expressão Popular. 2010. LUKÁCS, György. O romance histórico. São Paulo. Boitempo. 2011.

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