Por Tanael Cesar Cotrim
Além de Welles
"O Godard me ensinou a como fazer um filme pela metade do preço." Assim Rogério Sganrzela compõe o verbete sobre o diretor francês, contido no manifesto Cinema Fora da Lei, de 1968, concebido durante a produção de O Bandido da Luz Vermelha. Orson Welles, indubitavelmente, é uma provocação constante, transformada em testamento em O Signo do Caos (2003), filme derradeiro de uma obra em construção permanente, inquietante e inquietadora. Alça-se ao cimo do panteão estético do diretor brasileiro, com a sua concepção moderna de fragmentação subjetiva da personagem e sua decomposição mimética em seres fictícios. Não se representa, vive-se na arte. Acossado (1960), no entanto, tanto estilhaça, sob o prisma sociológico, os papéis e identidades quanto subverte a concepção do tempo narrativo. É bom caracterizar a importância da formação em etnologia de Godard, suas implicações estruturais do tempo-espaço dilatado. Uma síntese lógica parecida à do geólogo, que, diante de uma matéria, afere, por meio de suas estruturas internas, concretas, a ação da história, as correlações de eventos sucessivos que elaboraram o presente do corpo dado no instante. Sganrzela compõe sua obra inaugural, O Bandido da Luz Vermelha (1968), aos auspiciosos 22 anos, com a referência inolvidável do também longa-metragem de estréia de Godard, Acossado. A aparente desordem percorre o tempo, o espaço e o foco narrativo, revelada na fotografia ora soturna, ora intensa de Carlos Ebert. Intensificada na edição alucinada, desconcertante e, às vezes, intermitente, serena, com parcos pontos de apoio. Ambientada no desenho de som e na montagem codificada, tal qual um músico trabalha em sua pauta, elaborando o sentido do instante de acordo com a totalidade da peça. O momento é tangenciado pelo passado e futuro ao mesmo tempo, sem, no entanto, extrair uma origem causal do evento, nem uma resolução evidente do devir. Tudo está em camadas estruturais, operando internamente em sistemas, evocando e materializando a realidade. Jorge (Paulo Villaça) vive do crime, para o crime pôr sua vida evidente aos olhos das ordens social, cultural e política. Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo) Faz da vida um crime contra os crimes inerentes de uma sociedade aquietada e requentada de afã, parada na ordem. O latrocida é oportunista, o estelionatário é sedutor, ambos reféns de suas minguantes intimidades com as amantes. Um desafia a autoridade e zomba dos valores morais. O outro escapa das garras da polícia e sonha com o idílio. O trágico aplaca-os; um pela galhofa, o outro pelo destino; um pela pilhéria às formas tradicionais, o outro pela fatalidade da anômala existência. Welles deu a Sganrzela a régua, Godard o compasso e o Brasil a vida social.
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