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Ciclo Júlio Bressane de Cinema ou Um cinema insubordinado.

Atualizado: 7 de set. de 2023


(Imagem retirada de Sermões - A história de Antônio Vieira, Júlio Bressane, 1989)



Por Danilo Dias de Freitas e Tanael Cesar Cotrim.


À geração de cadáveres que nos pretende reger, abandonamos as cinzas da águia e as ferramentas dos coveiros. Que se empenhem com todas as forças para instituir o império dos mortos sobre os vivos: quanto a nós, guardamos nossa disponibilidade para o amor e a revolta 1.


Robert Desnos, 1927, Amor e Cinema.


Cinema Moderno. Cinema de Autor. Cinema Novo. Cinema Marginal. Cinema do Lixo. Cinema de Invenção. Cinema de Poesia. Cinema Experimental. O cinema de Júlio Bressane é tudo isso e nada disso; porque é antes de tudo um cinema a serviço da transformação radical da vida. Um cinema insubordinado.

Insubordinado ao capital e seus tentáculos midiáticos. Insubordinado ao narcisismo do eu-autor-de-cinema e sua reserva de mercado. Insubordinado à tirania da mediocridade cultural, pois se a cultura é a regra, a arte é a exceção, como prenunciou Godard em Eu vos saúdo, Sarajevo (1993).

A trajetória de Júlio Bressane como profissional de cinema começa no final de 1964, quando foi assistente de direção de Walter Lima Jr., em Menino de Engenho (1965). Dirigiu seu primeiro filme já no pós-golpe, em 1966, o belíssimo e delicado Bethânia Bem de Perto - A Propósito de Um Show, com parceria de Eduardo Escorel e David Neves. Depois realizou Cara a Cara, em 1967, com fortes influências do Cinema Novo 2, embora já fosse notável o gérmen da ruptura vindoura. Em 1969, com o recrudescimento da ditadura pós-AI-5, vem a ruptura definitiva com o núcleo central do Cinema Novo. Em um só fôlego, como é típico dos momentos de cisão, Bressane realiza Matou a Família e Foi ao Cinema (1969) e O Anjo Nasceu (1969), ambos em 16mm 3.

Em seguida fundará a produtora Belair, com Rogério Sganzerla e Helena Ignez. No ano de 1970 realizam nada menos que sete filmes: A Família do Barulho (Júlio Bressane); Cuidado Madame (Júlio Bressane); Carnaval na Lama (Rogério Sganzerla), Copacabana Mon Amour (Rogério Sganzerla); Barão Olavo, O Horrível (Júlio Bressane); Sem essa, Aranha (Rogério Sganzerla); A Miss e o Dinossauro (Helena Ignez).

É neste período politicamente conturbado, entre 1968 e 1970, que a insubordinação de Júlio Bressane se radicaliza, embora como efeito expressivo datado, como ele próprio admite 4. Por isso, arriscamos dizer, as fontes mais autênticas da insubordinação de seu cinema são tributárias de uma experiência ainda mais anterior. Aos dez anos de idade, Júlio ganha de sua mãe uma câmera Bell and Howell, 16 mm, e um projetor. E começa a brincar.

Ora, não há nada mais sério na vida que o brincar. E foi da brincadeira de filmar e projetar filmes em 16mm que surgiu o espanto, a surpresa, o desejo de fazer cinema como exercício radical de transformação de si, do mundo e da vida.

Bressane não cansará de repetir que foi com Abel Gance que pôde pela primeira vez confirmar o que difusamente sentia quando criança; que o cinema é a música da luz. Também dirá em muitas de suas entrevistas que o cinema é um organismo sensível que transpassa tudo, a vida, as artes, a ciência. E que faz cinema para descobrir o que seja fazer cinema, pois noventa por cento do que faz é inconsciente; e portanto o faz para sair de si e se transformar, transformar o outro, ser outro.

“Música da luz”, “organismo sensível que transpassa tudo”, “inconsciente”, “sair de si e se transformar”... todas essas expressões parecem remeter às experimentações infantis de Júlio, mas são indissociáveis das memórias de outro ilustre infante, o próprio cinema (ou cinematógrapho, como nas imagens do parque de diversões abandonado em O Anjo Nasceu 5).

O cinematógrapho nasce como misto de vigília e sonho, e, tão logo sua infância comece a florescer, vem castração, édipo, o nome do pai, etc.

Corte:

“O cinema é verdadeiro, uma história é uma mentira”6.

Outro corte:

“Os impotentes – os que proscrevem Carlitos, queimam os livros de Sade e guardam em sua alma luxúrias de lodo – impuseram ao cinema as múltiplas correntes de uma censura imbecil (…) cuidado, censor, olhe essa mão feminina palpitando em primeiro plano, olhe esse olho tenebroso, olhe essa boca sensual, seu filho sonhará com eles esta noite e, graças a eles, escapará à vida de escravo a qual você o destinava”7.

Esses dois períodos poderiam ter sido montados por Júlio Bressane, mas o primeiro (Bounjour Cinéma, 1921) foi escrito pelo jovem cineasta Jean Epstein, aos 24 anos, e o segundo (Amor e Cinema, 1927) pelo jovem poeta Robert Desnos, aos 27 anos. Ambos escritos em plena infância do cinema.

O que une os excertos dos dois jovens é a ideia do cinema como uma arte que já nasce moderna, revolucionária, libertária. O que os dois celebram, cada um à sua maneira, é a possibilidade de um novo tipo de homem, um novo tipo de sensibilidade, um novo tipo de escrita.

Uma escrita não submissa à velha ordem mimética. Uma escrita capaz de reunir em si o sensível e o inteligível, rompendo com a hierarquia platônico-aristotélica entre modelo e simulacro, razão e sensibilidade. Uma escrita sensível do real em celuloide e cristais de prata.

É a essa tradição do pensamento cinematográfico que a obra de Bressane parece se aliar, ainda que de modo inconsciente. Mas trate-se de aliança, não filiação. Não há nenhuma nostalgia ou vontade regressiva no cinema de Bressane. Quando mata a família e vai ao cinema, Júlio rompe os tabus, os interditos e prescrições colocados pela jovem geração de cineastas do período. Em 1963, em sua Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, Glauber Rocha interditara Mário Peixoto e prescrevera Humberto Mauro 8.

Desde Matou a Família e O Anjo Nasceu, Júlio prestará homenagens permanentes a Limite (1931) e Mário Peixoto, às vezes de modo explícito (Agonia, 1978), e permanentemente de modo implícito. Esse tributo não é só marca histórica da insubordinação, mas um modo de pensar e fazer cinema. Um modo de quebrar os tabus, interditos e prescrições. Um modo de continuar fazendo do cinema uma prática radical de transformação da vida. Um modo de alcançar a Harmonia - como anunciado por Matilda em Filme de Amor (2003) -, filha da união ilícita entre Marte e Vênus, lembrada como síntese do Deus do conflito com a Deusa do amor. “A harmonia é uma discórdia-concórdia, porque a mistura é a origem do mundo e seus membros são feitos de forças contrárias”, finaliza Matilda.

O cinema de Bressane é um cinema de misturas, que não se resume a contar histórias e nem somente a fazer música da luz, pois o poder revolucionário do cinema continua sendo o mesmo de seu nascimento e infância conturbada (não pura ou inocente): o trânsito mágico-profano entre sonho e vigília, o deslocamento mútuo entre aquilo que o pensamento sente e aquilo que a sensibilidade pensa.


Verve Cineclube, 09/03/2023



Notas:

1 XAVIER, Ismail (org). A experiência do Cinema. Rio de Janeiro. Edições Graal. 1983. p. 326.


2 Aqui, a designação Cinema Novo não deve ser apreendida como significado de um movimento político e estético com regras absolutamente definidas, mas como amálgama de tendências culturais e artísticas que permeiam determinada conjuntura histórica. Essas tendências podem ser sintetizadas na ideia de que o fazer cinematográfico é essencialmente reflexivo, independente, engajado, autoral, militante, comprometido com os desafios políticos e estéticos de seu tempo.


3 Ver depoimento de Júlio Bressane para o programa “Memória do Cinema” do Acervo MIS-SP: https://www.youtube.com/watch?v=T_WtBUOvx4o&t=978s.

A identificação precisa do material utilizado para a realização destes filmes se deve à coincidência com o material utilizado por Júlio Bressane em suas brincadeiras de infância, cuja importância se explicitará mais adiante no texto.


4 Ver A linguagem do cinema com Júlio Bressane, da Série Cineastas Brasileiros, de Geraldo Sarno. https://www.youtube.com/watch?v=0ZTbplUw_-A&t=1337s.

5 O anjo de Bressane, travesso, fugidio e de manjedoura humilde como o cinematógrapho nasceu em 16mm, mesmo suporte de suas brincadeiras infantis. Matou a Família e Foi ao Cinema também foi realizado em 16 mm.


6 XAVIER, Ismail (org). A experiência do Cinema. Rio de Janeiro. Edições Graal. 1983. p. 276.


7 XAVIER, Ismail (org). A experiência do Cinema. Rio de Janeiro. Edições Graal. 1983. p. 326.


8 Para mais detalhes, ver: ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. São Paulo. Cosac e Naify. 2003. p. 67.

 

PROGRAMAÇÃO:



Matou a Família e Foi ao Cinema (1969) - 11 de Março, às 16:oo horas.

Direção: Júlio Bressane

Duração: 78 min

Sinopse: Um rapaz mata os pais a navalhadas e vai ao cinema. Márcia, uma jovem rica e insatisfeita, aproveita uma viagem do marido para ir até sua casa de Petrópolis, onde recebe a visita de uma velha amiga, Regina.



Cuidado, Madame. (1970) - 8 de Abril, às 16:00 horas.

Direção: Júlio Bressane

Duração: 70 min

Sinopse: Três empregadas domésticas decidem se rebelar contra a sociedade que as oprime e começam a assassinar suas patroas.



Tabu (1982) - 13 de Maio, às 16:00 horas.

Direção: Júlio Bressane

Duração: 79 min

Sinopse: O encontro ficcional entre o compositor Lamartine Babo e o poeta Oswald de Andrade.



Brás Cubas (1985) - 10 de Junho, às 16:00 horas.

Direção: Júlio Bressane

Duração: 92 min

Sinopse: Irreverente adaptação da obra-prima de Machado de Assis, "Memórias Póstumas de Brás Cubas".



Sermões – A história de Antônio Vieira (1999) - 8 de Julho, às 16:00 horas.

Direção: Júlio Bressane

Duração: 78 min

Sinopse: História do padre Antônio Vieira, nascido em Portugal, em 1608, e falecido em Salvador, Brasil, em 1697.



Dias de Nietzsche em Turim (2001) - Dia 12 de Agosto, às 16:00 horas.

Direção: Júlio Bressane

Duração: 85 min

Sinopse: Ensaio cinematográfico sobre os meses que Nietzsche passou em Turim, na Itália.



Filme de Amor (2003) - Dia 9 de Setembro, às 16:00 horas.

Direção: Júlio Bressane

Duração: 90 min

Sinopse: Três amigos, Hilda, Matilda e Gaspar se encontram em um apartamento no centro do Rio de Janeiro para experimentarem outras formas de sentir o mundo.



A Erva do Rato (2008) - Dia 14 de Outubro, às 16:00 horas.

Direção: Júlio Bressane

Duração: 80 min

Sinopse: Ela é professora, com o pai morto há apenas três dias. Diante dessa situação, Ele pretende cuidar dela enquanto estiver vivo.



Educação Sentimental (2013) - 11 de Novembro, às 16:00 horas.

Direção: Júlio Bressane

Duração: 84 min

12 anos

Sinopse: Áurea é uma mulher sensível e experiente, que faz amizade com o adolescente Áureo. Eles se tornam inseparáveis, até que a mãe do rapaz confronta Áurea.



Beduíno (2016) - Dia 9 de Dezembro, às 16:o0 horas.

Direção: Júlio Bressane

Duração: 75 min

Sinopse: Um casal de dramaturgos conectam vida e arte em um cenário de luz e sombras.

LOCAL DE EXIBIÇÃO:


MIS-CAMPINAS

Rua Regente Feijó, 859 - Centro - Palácio dos Azulejos, Campinas.




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