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CARTAS / O CINEMA ESTÁ EM TSAI

Atualizado: 9 de abr. de 2021

Campinas, 10 de dezembro, de 2020


Caro amigo Danilo,


“Muita coisa falta nome”, um dia vislumbrou Guimarães Rosa. “Cada coisa com seu nome”, ensaiou Michel Foucault em verve científica. “O que nunca tem nome, nem nunca terá”, cantou o lírico Chico Buarque em uma versão de À Flor da Pele. E meu corpo está revelando tudo. Estranhezas. Parece etéreo, destituído do chão, mas não do tempo. E não é efeito do Coronavírus, mas da pandemia, que não nos afeiçoa a um encontro. As sessões privadas inócuas sem os debates. A saudade da curadoria. Acho que neste mês finalizaríamos com Carta para Jane, se não me engano. Quando assisti pela primeira vez a Adeus, Dragon Inn, do Tsai Ming –Liang, sobressaltaram em mim a surpresa, a alegria e os olhos marejados. Na segunda, a alegria e os olhos marejados. E na terceira, os olhos marejados. É um dos maiores do cinema, pronto. Não há o que temer, o que esconder. Não há um frame perdido. A plasticidade entre ritmo e prosódia. Tudo ali é centrípeto, como uma vez Julio Bressane explicou Jean-Marie Straub. Tudo concorre para o plano, o ângulo, o quadro. Aprendi que isso se chama Cosmogonia. Falar é perder-se. Dizer é preciso. É um enorme cinema. Lindo, pois que não haja palavra melhor. Agora me diga. Como descrever uma cena de cinema? Em que plano de texto? Enquadrado por quais léxicos? Com que ângulo sopesar as palavras? É ridículo. Mas as cartas, de amor, são ridículas, segundo Fernando Pessoa, que as escrevinhou. Pode ser ridículo. Mas pensemos com as mãos. Deixemos, somente, o pensamento correr pelas mãos, como um pintor, um pianista, um escultor, um escritor. Um cineasta, por que não? Os créditos iniciais de Dragon Inn arrolam enquanto, em off, black, um narrador contextualiza os eventos de 1457 na China dinástica e prepara o espectador para o épico. Corte abrupto emoldura na tela uma cerimônia de recepção de um ancião. Predominam o vermelho das vestimentas e o azul do céu, num dia irradiado por luz e cor, marcadas rigorosamente por diferenciação cromática. A melodia oriental orquestrada desenha caminhos macrotônicos de altivez, sobranceria e vigor, atravessada pelo ritmo marcado de um sino tenso, profano. Corte abrupto apresenta, de uma cabine, entre espionagem e esconderijo, através de uma fresta, móvel por cortinas marrons enlufadas, o gigante cinema lotado para a sessão. Três cortes seguidos, em plano geral, central médio, lateral esquerdo alto e lateral direito médio, esquadrinham uma panorâmica do espaço monumental, cortado pelo tempo do filme em projeção. Novo corte para no plano de dois espectadores, com a tela ao fundo, desfocada. Na cadeira da frente, um jovem careca de óculos, em diagonal no quadro, imóvel dentro da mobilidade de quem vê. Atrás, cabelos brancos aos ombros, idoso, no canto baixo direito do quadro, móvel dentro da imobilidade do plano. Dois minutos e 56 segundos iniciais e uma aula de cinema. Uma aula de arte. Poderia ter acabado ali. Uma epifania do domínio do tempo. A presença da ambiguidade característica de uma grande obra, entre o documental e o simbólico, o filme dentro do filme e o filme, que estrutura uma poderosa criação. Adeus, Dragon Inn é uma ganga de uma misteriosa jóia de artista de cinema. É sobressalto estético a todo momento. O pêndulo primordial. O cinema, instalado no Grande Teatro Fu-Ho é catedral e antro ao mesmo tempo. As personagens são e não ao mesmo tempo. Moderno e arcaico. Vida e arte. História e Diacronia. Signo e símbolo. Catarse e lirismo. Corpo e mente. Potência e impotência. Físico e metafísico. Contato e distanciamento. Passado e presente. Presença e ausência. Ser e estar. Moral e ética. Homem e mulher. Masculino e feminino. Erótico e pornográfico. Sexo e Tabu. Antíteses sintetizadas no paradoxo da arte. Incrível! Magnífico! Jean-Luc Godard, descobridor para mim, inventor para você, precisa atualizar sua cinefilia. Elucubrou que o cinema começou com Griffith e terminou com Abbas Kiarostami, o também grandioso Abbas. Se Pedro Costa reiventa o Realismo, nos ditames de Eduardo Escorel, Tsai Ming Liang reelabora o sentido do signo no cinema. Godard deveria, ainda jovem que é e permanece, navegar pelo Oriente remoto, ou passar na Prime Café, ali na Barão de Jaguara, de onde saímos para “flanar” e onde o ouvi tergiversar, de relance, sem me dar conta da valor do dito: “Estou interessado num cineasta taiwanês, Tsai Ming-Liang.” Interessante que o resgate desse incidente, acidente inescapável do destino, ocorreu depois de ler um artigo, não sei mais de quem nem onde, sobre a renovação da linguagem cinematográfica oriunda da Ásia. Foi incisivo em localizar no “Oriente” o “novo cinema do Século 21”. Titubeei. Desconfiei. A curiosidade cresceu amiúde. Pesquisei. Antevi. Assisti. Vi. Entrevi. Revi. Há um cinema poderoso, realmente. Há uma relação estética, visível em forma e conteúdo. Há uma ligação artística e afetiva, intuio. Jia Zang-Ke, Wang Bing, Hu-Bo, Lav Diaz, Apichatpong Weerasethakul, Lee Chang-Dong, são instigantes. Tsai Ming-Liang, no entanto, descola. Sua abordagem sígnica é única, original. Em Tsai o signo comporta-se além de suas propriedades internas. Evidente que operam por meio de sistemas coerentes, em eixo estrutural, nas relações de posição de cada elemento. No entanto, em Adeus, Dragon Inn, o cineasta aborda o signo como uma chave que abre o mundo exterior, com correlações previamente estabelecidas. A História, a cultura, o corpo, a sociedade, a arte, são atravessados pelas forças arbitrárias do signo. Nesse sentido, não há nada mais oriental do que o cinema de Tsai Ming-Liang, pois nele a vida se desenvolve mediante as intercorrências conscientes e inconscientes da existência no espaço e no tempo. De onde vem Tsai, querido amigo? Para onde vai Tsai? Tsai não aparece do nada. É tributário de uma horda de realizadores importantes e necessários ao cinema. Está nas elipses de Robert Bresson. Nas diagonais que cortam o espaço temporalmente no plano cinematográfico de Jean-Marie Straub. Na luz transformadora do tempo narrativo de Jean Renoir. Na montagem paralela em bricolagem de Jean-Luc-Godard. Na fragmentação do homem moderno de Antonioni. Na concepção de que o homem nasce só e morre só de Valerio Zurlini. No corpo afetado de John Cassavetes. Na realidade projetada de Kenji Mizoguchi. Na vida comum inserida no centro de tensão do mundo de F.W. Murnau. Para onde vai Tsai, querido amigo?


Tanael Cesar Cotrim

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