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Brás Cubas




Literatura e cinema evocam um tema central: a tradução.

Para falarmos de tradução, devemos nomear um iniciador, São Jerônimo. O primeiro dos nossos grandes humanistas a visionar a questão tradutória.

Diz Jerônimo, no século 4, de sua maneira de proceder nesta possível-impossível tarefa: "Traduzir palavra a palavra me parece deplorável. É preciso respeitar o caráter próprio de cada língua e visar, na língua traduzida, uma certa elegância e harmonia, a 'euphonia', preconizada fortemente pelos grandes críticos de Alexandria. Repudiar altamente a cacozelia, o zelo errado da literalidade, que, muitas vezes, desemboca em cacofonias absurdas e linguagem ruim..."

Para uma tradução experimental, uma tradução intersemiótica, de uma linguagem para outra linguagem, do texto para o filme, o que se impõe é a necessidade de uma tradução identificadora, que force os limites do meio traduzido. Tradução em cinema faz-se com luz-movimento-angulação-montagem.

Descobrir a luz, o ritmo, o fino fio de uma tradição de clichês cinematográficos que, transformados, transvalorados, recriados, reinventados, podem, de alguma maneira, nos sugerir, nos remeter, dar-nos uma ideia do formalismo do texto, do objeto, do espírito, do humor, do mau humor, do original.

Esta é a tarefa heroica que, segundo R. Jakobson, não é orientada pela razão, mas, talvez, unicamente, pela intuição...

Esta exigência de desleitura, de tradução criativa, dá-se, em se tratando, é claro, de obras individuais, de obras de poetas individuais.

Memórias Póstumas de Brás Cubas, livro dos mais estudados e analisados de nossa literatura, tem, ainda, a observar, a ser observado, um sinal, desconhecido, imanado de seu eixo (conservantismo/inovação) contraditório. Este sinal imanente, desconhecido, desconhecido e experimental, experimental e intuitivo, é o seu caráter interdisciplinar. Livro-limite, como veremos, com exemplos, adiante.

Na tessitura fônica, de M. P. B. C. ouvem-se estilhaços da prosa de Vieira, Bernardes, Almeida Garret (cujo Viagens a minha terra é uma das expropriações do Brás Cubas), Camilo Castelo Branco, Castilho, Herculano, a lírica portuguesa e Laurence Sterne, entre outros...

Sterne, citado no livro de Machado como um de seus modelos, é o autor de Life and opinions of Tristan Shandy, livro experimental central na tessitura da língua inglesa. Há, ainda, alusão ao título do livro de Chateaubriand, Memórias de além-túmulo.

M. P. B. C. mescla, aponta, inventa, sua tradição e renova e reinventa, pois Brás Cubas é prenhe de todo procedimento moderno que rolou na América nos últimos cem anos... É uma antevisão, visionária, do sentir, do fazer, modernista, em várias artes.

O livro, cujo entrecho, uma alucinação, percepção de um objeto imperceptível, eixada nos temas da melancolia e da saudade, caminha já no território mais desenvolvido do pensamento: o da ironia e do humor.

É a ironia, um processo de investigação, mais intelectual que o humor, que é mais líquido e imprevisto, que rege a expressão desta voz de além-túmulo.

Há, como se sabe, uma premonição extraordinária no Brás Cubas: o cinema e, sua alma, a montagem.

A prosa-capitular é arrastada até uma fronteira-limite onde transborda no procedimento cinematográfico da montagem, narrativa com cortes dentro da sequência, ou mesmo, plano sequência sem cortes. Capítulos que são fades; reticências que são véus; o leitor-lente (curiosidade: tem por vezes o leitor grande angular, por vezes, o leitor teleobjetiva!)

Tem título de capítulo que é um fotograma fixo. Um ponto de interrogação: um close-up. Um cartão de pêsames (pintura: ready-made): um capítulo.

O capítulo Senão do Livro é um travelling de câmera na mão, conduzida fora da altura do olho!

Diz Antônio Vieira: "Suponhamos que diante de uma visão estupenda saiam nossos sentidos fora de sua esfera e inaugurem o ver com os ouvidos e o ouvir com os olhos."

Tradução e contradição: circular da poesia a música, da pintura a literatura, do cinema a tudo, derrapando, rompendo barreiras, categorias, misturando as inter-relações mantidas pelos conhecimentos, coerência na complementaridade: isto é tudo e todo o movimento das contradições.

Em sua vegetação de significações diversas, este livro, engenhoso e inovador, tem como um de seus perfumes o caráter interdisciplinar, experimental, pois se situa em uma fronteira-margem. É livro no limite do livro, da música, da pintura e do... filme!

Obsequioso para a brevidade, seu estilo terso, castiço, mistura-se e capta o que dele se aproxima. E se aproxima:

Da pintura: readymade. Cap. CXXV

Epitaphio

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AQUI JAZ


D. EULÁLIA DAMASCENA DE BRITO


MORTA


AOS DEZENOVE ANOS DE IDADE


ORAI POR ELA!

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Da música: Velho diálogo de Adão e Eva. Cap. LV

BRÁS CUBAS................................?


VIRGÍLIA...............................


BRÁS CUBAS...........................................................................................................................................


VIRGÍLIA..........................................!


BRÁS CUBAS.................................


VIRGÍLIA................................................................................................................................................?


BRÁS CUBAS.................................


VIRGÍLIA...............................................


BRÁS CUBAS.....................................................................................................................................!



VIRGÍLIA....................................................?


BRÁS CUBAS..............................................!


VIRGÍLIA...................................................!

Da caligrafia-manuscritura: V. Cap. CXLII

Sua amiga sincera,



Do Cinema: Notas. Cap. XLV

Soluços, lágrimas, casa armada, veludo preto nos portais, um homem que veio vestir o cadáver, outro que tomou a medida do caixão, caixão, essa, tocheiros, convites, convidados que entravam, lentamente, a passo surdo, e apertavam a mão à família, alguns tristes, todos sérios e calados, padre e sacristão, rezas, aspersões d’água benta, o fechar do caixão, a prego e martelo, seis pessoas que o tomam da essa, e o levantam, e o descem a custo pela escada, não obstante os gritos, soluços e novas lágrimas da família, e vão até o coche fúnebre, e o colocam em cima e traspassam e apertam as correias, o rodar do coche, o rodar dos carros, um a um... Isto que parece um simples inventário, eram notas que eu havia tomado para um capítulo triste e vulgar que não escrevo.

Dar ênfase à maneira de compreender e apreender a luz, penetrar nas leis do ritmo e do movimento, tirar a câmera do tripé, da mão na altura do olho, da grua, do carrinho, e colocá-la em um varal de cordas, amarrá-la em um selim de bicicleta, precipitá-la em hélice no espaço, isto tudo traduz, para o filme cinematográfico, o sentido de inovação e experimento do livro Brás Cubas. Estes procedimentos cinematográficos nos ligam à vanguarda francesa dos anos 20 (L'Herbier, Dulac, Gance, etc.) e a Limite de Mário Peixoto, obra máxima do cinema experimental dos anos 20. Estes tropos cinematográficos, de alguma maneira, de algum modo, nos remetem ao formalismo deste livro único, Memórias Póstumas de Brás Cubas.

O filme Brás Cubas

Mesmo suando e soando dentro do cinema brasileiro como voz de salmista de cântico matutino, encontra tradição e tradução.

Onde? Alguns:

a) Nos fragmentos do grande Major Reis, o documentarista de Rondon e da Visão do Paraíso.

A câmera-lente que viu o paraíso e filmou o mito-Brasil, as medalhas do dilúvio, tudo feito com superior artesania, emoção e capricho. Cuidados de procedimento técnico (ver, por exemplo, os closes de índios e gente brasileira com composição, onde uma nervura (não) humana é registrada com lente plana).

São os dois grandes eixos por onde passa e de onde sai qualquer coisa que preste no nosso cinema: Major Reis e Benjamin Abraão, o mascate que filmou Lampião e Deus e o Diabo...

b) A Viagem de Fernando Campos

Há muito de poesia nestas imagens do capítulo do Delírio, a visão singela, mínima, de Pandora, com uma angulação de Limite e uma leveza de espuma em branco e preto, lente plana, câmera na mão fora da altura do olho...

Existe nesta sequência de A Viagem um cinema concebido como música da luz - notar os cortes, na sequência do Delírio, onde a imagem se sufumiga, se pulveriza, em nítido sentido musical.

c) Capitu de Paulo Cesar Saraceni

A tomada da mão do escravo em um corredor vazio e imenso, acertando os ponteiros do tardo relógio nacional, é grande cinema.

São duas tomadas:

1) close-up da mão, com luva branca, de um escravo acertando os ponteiros do relógio.

2) o corredor em plano geral com o escravo de pé diante do relógio imperial.

Este corte e o sentido-movimento desta montagem traduzem um procedimento do Brás Cubas livro e filme: o ideogrâmico.

Brás Cubas filme começa por objetos sólidos, passa às aguas de um poço e depois ao mar. De líquido torna-se fumaça, neblina, nuvem e termina no céu gasoso. De imagem saturada a imagem rarefeita. Do figurativo ao abstrato. De todas as cores ao branco...

Como transcriação do Brás Cubas livro em filme, vejamos um exemplo.

O plano inicial do filme transcria não só a dedicatória, mas a própria prosa capitular, experimental, que expõe, como o relojoeiro, os mecanismos com o qual trabalha, com os quais opera e faz.

O plano sequência sem cortes move a imagem. A câmera na mão direciona-se para uma caveira envolta em névoa, ouve-se a música, sobretudo a voz, voz de além-túmulo, voz sepulcral, voz do rei da voz, Francisco Alves, que traz para a cena a figura de um técnico de som empunhando um microfone preso aos fios e faz um movimento circular, em torno de um eixo. Procura alguma coisa com o microfone, nada encontra, pois o som já abandonou a caveira...

Ao penetrar no olho da caveira, o falo sonoro, falo sensível ao som, o microfone, transforma-se em "necrofone". Roça os ossos, vai e vem, pela coluna dorsal, produzindo, entretanto, um mesmo som, que é o chocalhar fatídico de si próprio. Mas, de repente, a câmera faz uma torção de 180 graus e o quadro se inverte - o próprio técnico fica de cabeça para baixo e pernas para o ar...

Na reviravolta, não é mais o vivo que está sobre o morto e sim o morto sobre o vivo.

A cabeça do mundo olhando para a caveira do mundo. A cabeça sobre a caveira. A caveira é maior. A oscilação em tempo dilatado e incomum no necrofone, perscrutando o som da caveira, a luz filtrada pela névoa, abrem espaço à embriaguez, ao mesmo tempo onírica e sonora. Uma Imagem-Tempo. Tempo futuro. Futuro de um vivo morto. Morto que escreve. Escreve e canta. Canta um samba. O samba diz:

Eu fiz um samba.

Eu fiz um samba, para o meu amor...

Vemos, intuímos, que a tradução é um devir da obra literária ou artística. A tradução é sinalização histórica do sentido.

O cinema tem sido a história da reprodução de alguns clichês com um entendimento, uma percepção, da luz, em diversos estados, diversos tempos e diferentes técnicas.

O devir da imagem é o devir da luz. A metamorfose dos clichês é a metamorfose da luz desses clichês. Metamorfose da luz desses clichês, quadro a quadro, grão a grão... total.

Júlio Bressane, 2000

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