Por Danilo Dias de Freitas
Fazer várias obras diferentes é exatamente como quando, após se comer macarrão lamen, o que se quer é arroz com curry e, depois, arroz com tempura. O que muda é só o que vem depois, não é? Nisso, eu sou como um fabricante de tofu. Mesmo que digam que este ou aquele é diferente do anterior, o tofu não muda muito, e o máximo que podemos fazer é tofu frito ou tofu com alguma coisa. Talvez porque ao homem não é permitido voar, não tenho muito interesse a não ser nisso [cinema]. [22 de Dezembro de 1958].
Yasujiro Ozu.
Se num esforço de síntese tivesse que definir o cinema de Yasujiro Ozu em uma palavra, diria que é um cinema da suspensão. Não se trata de suspense, como nos filmes em que as imagens, os sons e a montagem subordinam-se ao jogo de esconde-esconde dramático entre enredo e espectador; filmes que funcionam pela produção do jogo de estímulo e reposta daquilo que é dado ao espectador conhecer sobre o enredo. O clássico... o que vem depois?... e depois? ….e depois?
Mas não é o cinema por excelência a arte desse... o que vem depois?... e depois?... e depois?
Por acontecer no tempo, um filme está irremediavelmente conectado ao “e depois... e depois...etc...etc.
Mas o tempo não é uma soma de instantes imóveis, uma adição quantitativa de pontos matemáticos isolados. O tempo é uma duração e, enquanto tal, uma qualidade, não uma soma de quantidades. A ideia do tempo como sucessão de momentos matematicamente isolados é mais o resultado de sua espacialização que sua natureza ontológica. Em outras palavras, é mais o resultado da percepção sensório-motora habitual da realidade que a própria natureza do tempo. E mesmo o movimento de um corpo no espaço não é a soma aritmética de suas posições percorridas. O movimento é ele próprio uma endosmose, uma mistura, uma qualidade extensiva 1. É o que nos ensina o cinema de Ozu.
Em Ozu, “o que vem depois” não está submetido ao curso habitual da conexão de simultaneidades tão característica do cinema hegemônico. É que o essencial do cinema de conexão de simultaneidades é não dar brechas ao que é indefinível no tempo e no espaço. Tudo deve estar bem localizado segundo coordenadas identificáveis. Em Ozu, ao contrário, o essencial é indefinível, nunca definitivo.
Em Era uma Vez em Tóquio (1953) sabemos de saída que o filme se passará em Tóquio. Mas a Tóquio que presenciamos é a mesma do casal de idosos: uma cidade anônima – uma chaminé, um varal de roupas ao vento, uma viela de um bairro popular, um bar, um corredor de um conjunto habitacional humilde.
No mesmo filme há o seguinte procedimento: o velho olha para fora do quadro, como que observando a esposa e o neto. Pela posição em que se encontra na casa, somos levados a crer que o velho olha pela janela. Mas no plano seguinte não há qualquer indicação que o velho de fato olhava pela janela, pois esta não aparece em nenhum momento. Os dois planos ligados pela montagem flutuam no ar. O que há é um jogo de conexão-desconexão. São esses procedimentos de virtualização do real que percorrem todo o cinema de Ozu, nos dando a sensação de uma abertura da ordem pelo caos e vice-versa.
Ozu se equilibra na corda bamba desses jogos de conexão e desconexão, dureza e flexibilidade, velho e novo, rotina e grandes acontecimentos, vida e morte, repetição e diferença, presente e eternidade, mas sempre sob o signo da impessoalidade e do anonimato.
É como se na presença dos filmes de Ozu pudéssemos sentir aquela impessoalidade absoluta que rege a vida e o mundo, nos remetendo a uma espécie de sagrado anônimo. Daí a elevação do cotidiano e da rotina ao status cinematográfico. É na rotina que se encontra a permanência da ordem cósmica e, por isso mesmo, o espaço-tempo privilegiado de irrupção do caos.
O cineasta Kiju Yoshida, ao falar sobre Era Uma Vez em Tóquio, diz que “é uma obra na qual ordem e caos concorrem, misturando-se sem poderem ser decantados. Seus termos opostos digladiam-se sem parar. É certo que esse embate complexo, entretanto, foi expressado de modo leve, como se fosse natural (…). Talvez o diretor [Ozu] tenha percebido que não poderia falar do nosso mundo a não ser por meio da relatividade das relações, como sugeriu no filme Pai e Filha, quando o pai e seu amigo se divertiam com jogos de palavras segundo os quais as posições dos pontos cardeais não passariam de denominações relativas ”2.
Gilles Deleuze dirá algo semelhante, mas de outro modo. Dirá que Ozu foi o primeiro a desenvolver uma obra com “situações óticas e sonoras puras”, o “inventor dos opsignos e sonsignos” característicos da imagem-tempo. Segundo Deleuze, “a situação puramente ótica e sonora desperta uma função de vidência, a um só tempo fantasma e constatação, crítica e compaixão, enquanto as situações sensório-motoras, por violentas que sejam, remetem a uma função visual pragmática que “tolera” ou “suporta” praticamente qualquer coisa, a partir do momento em que é tomada num sistema de ações e reações”3.
Nesse sentido, talvez Bom dia (1959) seja um dos filmes que mais destoe do estilo de Ozu. Ainda estão lá todos os signos da impessoalidade e do anonimato presentes na grande maioria de seus filmes: a rotina de uma vizinhança comum, um bairro qualquer, chaminés de uma fábrica distante, um varal de roupas estendidas.
Mas ao contrário de muitos de seus filmes, esses elementos se conectam com maior força centrípeta ao núcleo de ação dramática do enredo. Os varais de roupas ao vento tão costumeiramente usados nos filmes de Ozu para marcarem a suspensão temporal da ação dramática (Filho Único, 1936; Era uma vez um Pai, 1942), em Bom Dia aparecem como signo da continuidade. Ao contrário da maioria das personagens de Ozu, os dois irmãos de Bom Dia desejam algo com força suficiente para gerar todo um encadeamento de episódios conectados com mais intensidade dramática que de costume. Em geral, as personagens de Ozu não só não desejam nada em específico como se recusam a desejar o que se deveria desejar. A filha que não deseja o casamento como deveria desejar, em Pai e Filha (1949). O mesmo em Também Fomos Felizes (1951) e A Rotina Tem seu Encanto (1962), etc.
Não parece à toa que o objeto de desejo dos irmãos seja uma televisão, o eletrodoméstico que irá produzir 100 milhões de idiotas segundo a confirmação de uma das personagens anônimas do filme. Talvez aqui permaneça a profunda ironia e desconfiança de Ozu em relação ao cinema-engodo, como nos alerta Kiju Yoshida.
Mais intrigante ainda é que, depois de toda reviravolta impulsionada pelo desejo das crianças, Ozu tenha escolhido o corredor da casa para encostar a caixa da televisão recém-comprada pela família.
A fixação de Ozu em colocar sua câmera baixa em corredores dos mais diversos tipos nos remete à vidência de que fala Deleuze. Noel Burch, em Práxis do Cinema, se detém sobre o fato de que Ozu talvez tenha sido o primeiro a fazer um uso mais consistente do quadro vazio como método de virtualização do espaço off 4. Mas não diz nada em especial sobre os corredores, esses espaços vazios tão privilegiados na obra de Ozu.
Os corredores são locais de passagem, de movimento, de translação dos corpos. São espaços de suspensão utilitária. Podem até servir como depósito improvisado; às vezes é onde se suspende um relógio.
Os corredores não servem para nada que não seja transitório. Dorme-se no quarto. Cozinha-se na cozinha. Confraterniza-se na sala. Nada se faz de importante nos corredores. São locais puramente objetais; de não permanência. Em Bom dia, curiosamente, Ozu encosta a televisão recém-comprada no corredor e pronto... está resolvido o conflito. Os meninos votam a dizer “Bom dia”, igualando sua prática à dos adultos. O cinema de suspensão encosta uma televisão no corredor da casa e tudo parece voltar ao normal.
Será?
Não estaria Ozu sugerindo que a televisão, o encosto, mais do que marca simbólica da transição cultural do Japão pós-guerra, seria a principal responsável pelo aprofundamento da hegemonia material do cinema-engodo, o cinema-comunicação de que ele tanto fugia? Um cinema sem espaço para o invisível, o indizível, o incomunicável?
1 Esse raciocínio é tributário de parte da obra de Henri Bergson: Ensaios sobre os dados imediatos da consciência (1889); Matéria e Memória (1896); A Evolução Criadora (1907); A Energia Espiritual (1919).
2 YOSHIDA, Kiju. O Anti-Cinema de Yasujiro Ozu. São Paulo. Cosac & Naify, 2003. p. 195.
3 DELEUZE, Gilles. A imagem-Tempo. São Paulo. Brasiliense, 2007. p. 29 e 30.
4 BURCH, Noel. Práxis do Cinema. São Paulo. Perspectiva, 2011. p. 39.
* Citação de Ozu (Hôchi Shimbum): In: YOSHIDA, Kiju. O Anti-Cinema de Yasujiro Ozu. São Paulo. Cosac & Naify, 2003. p. 33.
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